DEBATE ABERTO
A diplomacia tradicional sofreu uma inflexão progressista no governo do presidente Lula e o papel de Samuel Pinheiro Guimarães e do chanceler Celso Amorim foi decisivo no processo. Mas o passo será limitado se um novo horizonte não for estabelecido com urgência.
Nildo Ouriques
A ação decidida do Brasil na reversão do golpe de estado em Honduras despertou a ira da direita brasileira que se apressou em condenar a falta de propósito e o risco implícito para a tradição de nossa política externa com a presença militante do presidente deposto Manuel Zelaya na embaixada brasileira em Tegucigalpa.
Não há dúvidas que as declarações do presidente Lula, do assessor especial para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, e do próprio chanceler Celso Amorim foram acertadas, enfáticas e até certo ponto, surpreendentes. Mas elas indicam, realmente, uma mudança na linha tradicional da política externa brasileira?
O golpe que depôs o presidente Manuel Zelaya decorreu da ação direta da embaixada estadunidense em Honduras com conhecidas e íntimas articulações com a elite empresarial e os militares hondurenhos. Tratava-se de um risco calculado, mas cujo objetivo decisivo era claro: impedir que o presidente Zelaya elegesse o seu sucessor e que sua opção pela ALBA abrisse um capítulo bolivariano na América Central. Em dezembro de 2007, por ocasião da IV Reunião da Patrocaribe, patrocinadora de um Tratado de Segurança Energética, o presidente Zelaya assinou um acordo conveniente para seu governo. Em agosto de 2008, Honduras se integrou a Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), criada em 2004 para impulsionar a integração latino-americana. O argumento golpista segundo o qual ele violou a constituição com a realização de um plebiscito sobre a necessidade de uma constituinte não resiste a analise superficial, pois é mais do que sabido que a consulta não vinculante – ou seja, sem força constitucional – não poderia se instalar e decidir em favor da reeleição antes das próximas eleições presidenciais.
As decisões do governo do presidente Manuel Zelaya somente são surpreendentes se nos limitamos a sua origem de classe. Proprietário de terra e com ampla folha de serviço prestado às classes dominantes locais, seu governo foi gradualmente realizando opções que escapavam da tradição conservadora hondurenha, até inscrever-se com certo radicalismo na oposição ao “neoliberalismo”. A despeito de sua classe de origem, a verdade é que seu governo avançou não somente na oposição as políticas “neoliberais”, senão que avançou na direção do fortalecimento da onda bolivariana que de forma inédita a América Latina vive. Por que esta mudança? Há uma nova correlação de forcas na América Latina que justifica o pragmatismo do presidente Zelaya em direção à esquerda. No caso de Honduras, é fácil constatar que muito mais do que um ato isolado e intempestivo, o rumo tomado pelo presidente deposto tem perfeita racionalidade quando analisamos as mudanças globais em curso no continente.
A estratégia dos Estados Unidos para a América central combinou a guerra de baixa intensidade com a emergência de democracias restringidas. Não restam dúvidas que foi uma linha de ação vitoriosa, especialmente quando os Acordos de Chapultepec levaram aos movimentos guerrilheiros de grande envergadura – o FMLN de El Salvador e a URNG na Guatemala – a entregar suas armas e iniciar a “longa marcha pelas instituições”. Por mais de dez anos, o heroísmo guerrilheiro foi substituído por derrotas eleitorais contundentes e certa marginalidade política tanto em El Salvador quanto na Guatemala. Honduras seguia seu rumo disciplinado, pois sempre foi um ponto estratégico para a ação imperialista na América Central, não somente pela presença da base militar estadunidense e base de operação contra a vitoriosa Revolução Sandinista ocorrida na Nicarágua em 1979, mas pelo histórico de submissão de sua elite a política de Washington para a região.
A estratégia militar estadunidense foi acompanhada do Plano Puebla-Panamá, que reservava para Honduras o desenvolvimento da indústria maquiladora e certa abertura para os produtos agrícolas do pequeno país periférico no mercado dos Estados Unidos. Mas a aliança EUA-China é mais importante em tempos de disputa hegemônica, especialmente quando as relações entre a elite hondurenha e os Estados Unidos pode ser considerada quase “carnal”. A segunda metade da década de noventa levou com rapidez os empregos da indústria maquiladora ao sul da fronteira dos Estados Unidos para a China e o leste asiático, a despeito dos baixos salários pagos na América Central que, em Honduras, se limitavam a míseros 40 centavos de dólar por hora trabalhada. Um regime de superexploração, obviamente. Contudo, mesmo com aquele deslocamento fatal da indústria maquiladora, restavam ainda as remessas dos imigrantes hondurenhos nos Estados Unidos, fonte de divisas considerável para economias como El Salvador, Guatemala, Equador, República Dominicana, etc. A eclosão da crise em setembro de 2007 já anunciou tempos difíceis, particularmente visíveis após 2008 quando esta se generalizou, mas manteve o epicentro nos Estados Unidos.
Segundo a Cepal, desde outubro de 2008 a indústria maquiladora eliminou mais de 39.000 empregos. As remessas despencaram para todos os países que “fechavam” seus déficits no balanço de pagamentos com o fluxo constante, crescente e seguro do trabalho sem cidadania nos campos e centros urbanos estadunidenses. As remessas que em 2007 somaram 2,8 bilhões de dólares, aproximadamente 22,15% do PIB, pelo menos 70% destinado a gasto corrente das famílias, despencaram em 2008, mas já estavam em declínio desde agosto de 2007. A crise social nos países centro-americanos não era ainda maior porque os imigrantes remetiam todos os meses milhões de dólares aos bairros pobres das principais cidades da região. Finalmente, o CAFTA, tratado de livre-comércio assinados entre os Estados Unidos e a América Central enfrentou considerável oposição no congresso estadunidense mesmo com o apoio decidido de George Bush, mas suas promessas de um paraíso para os países da região desapareceram após a crise global.
Neste contexto, o deslocamento à esquerda de Manuel Zelaya era não somente resultado da ação pragmática de um presidente que herdou o colapso de uma estratégia que durante certo tempo funcionou para a elite crioula, mas também, e talvez principalmente, a percepção de que os Estados Unidos já não podem tudo na área que consideram sua reserva estratégica. Não há, como sabemos, ideologia que se sustente sem força material. A erupção do nacionalismo revolucionário inaugurado com a ação decidida do presidente da Venezuela Hugo Chávez, deixou de ser apenas instrumento de retórica como ideologicamente muitos analistas repetiam, mas fruto de uma estratégia que colocou por vez primeira na América Latina o tema da integração econômica com força econômica, política e cultural. Muitos economistas consideram que a integração econômica é inútil para um projeto nacional-popular no Brasil e, em conseqüência, minimizam sem vacilação a política do nacionalismo revolucionário em curso em outros países. No entanto, nenhuma programa popular no Brasil poderá prescindir da integração econômica que não poucas vezes aqui é percebida apenas como parte de uma estratégia sub-imperialista do empresariado nacional e deu seu aliado de sempre, as empresas multinacionais. Em oposição, para os chamados pequenos países periféricos, a integração econômica é parte decisiva de um projeto nacional destinado a superar as condições ultra limitantes do subdesenvolvimento e da dependência.
O surgimento do nacionalismo revolucionário não é, portanto, fenômeno passageiro. Possui tradição na América Latina e encontrou lideranças políticas com capacidade de atuação e percepção estratégica. Esta política de orientação claramente anti-imperialista supõem reforço da soberania nacional, controle dos recursos estratégicos, nacionalizações e estatizações e, especialmente, um novo horizonte para a crise da democracia representativa: a democracia participativa. Em primeiro plano implica em diminuir a ação das empresas multinacionais, consideradas estratégicas tanto para democratas quanto para republicanos nos Estados Unidos. A direita mundial – e especialmente a brasileira – orienta sua crítica contra o presidente Hugo Chávez, mas é cada dia menos eficaz a hostilidade ao bolivariano, pois existem outros presidentes atuando na mesma direção com grande sabedoria.
Há no Brasil uma crônica falta de percepção da importância desta significativa mudança na correlação de forças porque grande parte dos analistas ainda julga os conflitos do período atual como uma simples reação de setores sociais ao desgaste inexorável do “neoliberalismo”. Portanto, descartam a existência de uma ofensiva do nacionalismo revolucionário que abriu novas portas e elucidou uma nova correlação de forças na América Latina. Ao contrário de uma simples manifestação de “populismo”, o nacionalismo revolucionário é o principal protagonista das relações internacionais da América Latina no mundo. Quem poderá se opor a esta força nova e renovadora? As energias da chamada “Nova Direita” estadunidense liberadas na administração de Ronald Reagan tiveram seu auge na guerra de baixa intensidade livrada especialmente no terreno da América Central, mas exauriram sua força no segundo mandato de George Bush. O exercício da presidência imperial da última administração republicana deixou um legado difícil para o presidente Barak Obama pois destruiu algumas cartas decisivas do discurso liberal tanto de republicanos quanto de democratas nos Estados Unidos. Neste contexto, cabe perguntar o que os Estados Unidos podem oferecer para a região? Abertura de mercados? Alianças estratégicas no terreno econômico? Um compromisso com a democracia representativa quando é precisamente esta que entrou em colapso em vários países? Depois da eclosão da grande crise global e dos resultados econômicos, políticos e culturais terríveis para o México oriundos da entrada em vigor do Nafta, quem poderá acreditar nestas promessas abaixo do Rio Bravo?
Não restam muitas dúvidas sobre o futuro imediato: Zelaya, muito provavelmente voltará a cadeira presidencial. O retorno do presidente a Tegucigalpa já lhe devolveu o protagonismo interno e certa influencia nas eleições presidenciais que se avizinham. Neste contexto, devolver-lhe a cadeira presidencial não representa prejuízo maior para as forças que lhe assestaram o golpe de estado e, seu retorno possui a virtude de garantir que Honduras “voltou à democracia”. A prerrogativa “democrática” é essencial para todos os postulantes à cadeira presidencial no país e também esta de acordo com os interesses de Washington. As poucas semanas que ainda restam a Zelaya no exercício presidencial não alteram substancialmente o quadro eleitoral interno e permitirá as credenciais democráticas ao governo que nascerá das urnas em 29 de novembro. O estado de sítio será em breve revogado, não há dúvidas. Mesmo que a solução constitucional se dê pela emergência de um tercius, o fato é que o resultado não alterará em grande medida os resultados obtidos pelos golpistas... ainda que, dialéticamente, deu maior visibilidade e credibilidade ao presidente deposto.
Há, contudo, um fato novo em Honduras. As forças representadas pelo Presidente Zelaya amadureceram politicamente e não restam dúvidas de que o debate sobre a constituinte não cederá. É muito provável que o novo presidente tenha que enfrentar esta questão e os ânimos populares renovados pela derrota dos golpistas. Neste contexto, Zelaya mesmo fora do governo representa uma força decisiva nos próximos anos, não somente em Honduras, mas em toda a América Central. As causas que o levaram a fazer esta dramática virada ideológica e política não desapareceram com o golpe de estado; ao contrário, fortaleceram ainda mais o movimento popular e a consciência de que os limites da democracia restringida em Honduras já não são suportáveis para a maioria.
Neste contexto, não há dúvidas que o protagonismo exercido pela chancelaria brasileira nos capítulos finais da crise hondurenha será recompensado com as manchetes da imprensa mundial e não restará aos seus críticos de direita no Brasil senão o reconhecimento de que a jogada embora muito ousada, deu prestígio e autoridade ao país. Em qualquer caso, a oposição ao presidente Lula (tucanato) dirigirá sua crítica a aspectos secundários da atuação, ainda que não possa discordar que o papel de “potencial regional” que compartilha em segredo com o petismo tenha sido afirmado em larga medida. Este consenso entre tucanos e petistas é suficiente para manter afastada as possibilidades de uma política anti-imperialista já em curso na América Latina, representada pelo surgimento do nacionalismo revolucionário. Este supõe o fortalecimento da soberania, com o respectivo controle dos recursos estratégicos, nacionalizações e estatizações. Em primeiro plano implica em diminuir a ação das empresas multinacionais, consideradas estratégicas nos Estados Unidos tanto para democratas quanto para republicanos.
O golpe de estado em Honduras revela que o Brasil adotou nova conduta nos assuntos latino-americanos após a vitória de Barak Obama, agregando certo protagonismo em sua ação continental. No essencial, o Itamaraty alimenta uma linha diplomática que oferece uma alternativa ao nacionalismo revolucionário sem aparentemente lhe hostilizar. É obvio que esta perspectiva é apoiada por Washington, que não cansa de assinalar o papel do Brasil como “potência emergente” em escala global e “liderança natural” na América Latina. Para consumo interno e mesmo para muitos de seus críticos, a atuação diplomática brasileira aparece como se Lula tivesse dado ao Brasil “projeção na política internacional que o país jamais tivera” e inclusive como “passo primordial e extenso de descolonização do Brasil”, como afirmou o colunista Jânio de Freitas. Este horizonte é, obviamente, demasiado otimista, pelo simples fato de que não esta em curso um processo de descolonização da sociedade brasileira; aliás, longe disso, estamos caminhando para o lado oposto, basta verificar o tratamento privilegiado dado as multinacionais e sua inquebrantável aliança com o empresariado nacional, especialmente paulista. Mas os países centrais e especialmente os Estados Unidos seguirão reconhecendo no Brasil o papel de “potencia regional” como peça necessária para diminuir o impacto do anti-imperialismo bolivariano em curso em vários países.
O protagonismo brasileiro contra o golpe em Honduras revela também que a política externa brasileira deixou de ser assunto para os especialistas. A rigor, não existe no Brasil um debate sobre alternativas de política econômica, tamanho o consenso entre os tucanos e os petistas neste terreno. Na política externa, o tucanato espeta o petismo em questões secundárias, exorcizando o espectro de Bolívar que é sempre evocado como se a diplomacia brasileira estivesse disposta a ceder diante de seu forte poder de sedução do bolivarianismo. Com este artifício, a direita pretende limitar a política externa brasileira aos interesses consolidados pela política econômica e, em conseqüência, garantir o verniz democrático da política empresarial expansionista na América Latina, cuja base principal se localiza em São Paulo. Por esta razão, em grande medida o debate sobre a orientação da política externa ainda esta cativo dos mitos, todos destinados a afastar a opinião pública da corrente anti-imperialista em curso no continente latino-americano. Em conseqüência, ainda vamos ouvir muito sobre a necessidade da “neutralidade” na política externa, sobre a importância de nossa função “moderadora” num continente em conflito, algo sobre nossa suposta sadia eqüidistância das ideologias, e outros artigos de consumo ideológico imediato.
A elite brasileira e a consciência ingênua de amplos setores sociais (inclusive de esquerda) seguirão insistindo com discreto otimismo sobre as vantagens da política de “potencial regional” e as virtudes derivadas do caráter democrático-progressista da política externa nacional. A limitação é obvia, pois esta concepção não passa de linha auxiliar na profunda crise do liberalismo como ideologia do capitalismo. Serão suficientes para enfrentar o espectro de Bolívar?
A única alternativa para o Brasil seria a “latino-americanização” de sua política externa. Atuar, em conseqüência, pela integração latino-americana, como único meio de romper o controle sobre a política econômica que perpetua nosso subdesenvolvimento e dependência. Não é preciso muito esforço para observar que esta opção não faz parte da tradição diplomática brasileira, mas no mundo atual e diante dos conflitos e oportunidades a que estamos submetidos, qual a importância da tradição?
A diplomacia tradicional sofreu uma inflexão progressista no governo do presidente Lula e o papel de Samuel Pinheiro Guimarães e do chanceler Celso Amorim foi decisivo no processo. Mas o passo será limitado se um novo horizonte não for estabelecido com urgência. Foi Samuel Pinheiro Guimarães quem anotou acertadamente que a estratégia americana (estadunidense) para o Brasil “procura evitar a articulação brasileira com outros Estados que possa pôr em risco a hegemonia e a capacidade de negociação americana.” . Ora, quais são outros estados com os quais podemos fazer uma aliança estratégica em condições excepcionais? Não restam dúvidas que alianças localizadas e momentâneas são possíveis e mesmo necessárias como peça da política externa, mas é ainda mais importante que estas se realizem pelo bloco latino-americano que se organiza e avança de maneira lenta, porém decidida. É muito pouco provável que um cenário tão favorável na correlação de forças entre a região e os Estados Unidos se verifique novamente na América Latina. O grande obstáculo para avançar nesta direção é, todos sabemos, a política econômica. E a política econômica do governo Lula, a despeito de suas diferenças pontuais com o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, expressão os interesses da burguesia brasileira. Esta apenas observa os países da América Latina como “mercados” e nunca como governos com os quais o Brasil teria que estabelecer uma aliança estratégica contra a superação do subdesenvolvimento e da dependência.
É neste contexto que o caráter progressista da política externa brasileira revela suas virtudes e também seus instransponíveis limites. É também aqui que a ruptura com a economia política da “potencia regional” deve ser abandonada em favor de um projeto nacional e popular que ainda esta em construção no país.
Professor do Departamento de Economia e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC. (www.iela.ufsc.br )
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