16 de outubro de 2011

Carta Maior - Especial Ocupando Wall Street

Carta Maior - Especial Ocupando Wall Street:

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A marcha dos insensatos

 

A Amazônia é a maior fonte de vapor continental do planeta, produzindo 7 trilhões de toneladas de vapor por ano. Grande parte da chuva que cai na América do Sul tem origem na floresta. Segundo o físico Paulo Artaxo, do Laboratório de Física Atmosférica da USP, quando o desmatamento atingir 20% da floresta, ela pode entrar em regressão. Sem floresta e sem umidade, as chuvas diminuirão. Parece claro. Porém, a visão mais comum no agronegócio brasileiro é a floresta como um inferno verde, que não produz nada. A marcha dos insensatos segue em marcha acelerada. O artigo é de Najar Tubino.

Najar Tubino

É uma marcha acelerada e envolve a produção de comida no planeta. O Brasil como um dos batedores, líder no agronegócio, com destaques para produção de soja e carnes, além de cana-de-açúcar (etanol). Um mercado que gerou US$88,3 bilhões de agosto de 2010 a agosto de 2011. Somente nos oito meses deste ano, foram US$61,5 bilhões, em exportações. O agronegócio é 40% do PIB se pegarmos todas as cadeias produtivas reunidas, enfim, vale mais que US$1 trilhão. E conta com uma bancada no Congresso Nacional poderosa. O mundo precisa de alimentos, muito embora quase a metade da produção de grãos brasileira – 148 milhões de toneladas no ano passado – seja de soja, a leguminosa mais influente do Planeta, de origem chinesa e que se espalhou pelo Brasil, a partir da região Sul, na década de 1970, e hoje se alastra pela Amazônia, tomando o sul do Amazonas.
Em termos mundiais o óleo de soja perde para o dendê (óleo de palma), 40 milhões de toneladas contra 45 milhões. O dendê é a soja da Ásia. Assim como o Brasil planta quase 25 milhões de hectares, a Indonésia planta 6 milhões de hectares de dendê, com projeto de chegar aos 20 milhões até 2020. Mesmo ano que a Índia espera ter 14 milhões de hectares de pinhão manso. Todos os três entram na composição de combustíveis vegetais.
Enormes pressões
O biodiesel brasileiro é produzido com soja (80 %), em segundo lugar, com sebo bovino, que teve seu preço completamente alterado no mercado do boi, em função desse aproveitamento. São negócios paralelos, cada vez mais reforçam o poder da leguminosa. Seu subproduto mais conhecido é o farelo, usado na ração de aves e suínos, criados no sistema industrial, confinados, com produção intensiva – ciclos de 40 a 180 dias. Os chineses, em 2010, compraram 30 milhões de toneladas em grão do Brasil – 15% da exportação.
A China cresceu, trouxe trabalhadores do campo para a cidade, a renda se elevou, e o consumo de carnes deu um salto. Em 1980, o consumo médio era de 13,7kg, em 2005 foi de 59,5kg, a maior parte de carne suína, embora os chineses tenham importado recentemente 400 mil toneladas de carne de boi. Entretanto, a média mundial também subiu: de 30 kg para 41,2kg, no mesmo período, segundo os dados da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação).
A produção de carne mundial atingiu 228 milhões de toneladas em 2010. A previsão para 2050 é que duplique – 463 milhões de toneladas, com uma população de 9 bilhões de habitantes. Isso significa que o rebanho bovino crescerá de 1,5 bilhão para 2,6 bilhões de cabeças e o de ovinos e caprinos de 1,7 para 2,7 bilhões de cabeças. A FAO também divulgou um relatório sobre os impactos da pecuária sobre os ecossistemas do Planeta:
- Haverá enormes pressões sobre a saúde dos ecossistemas, a biodiversidade, os recursos em terras e florestas e na qualidade das águas. Os governos devem adotar medidas para reduzir o custo ambiental da expansão da pecuária... Os preços atuais das terras, da água e dos alimentos usados na produção de carne não refletem o verdadeiro valor destes recursos.
Rumo norte
Além disso, 18% dos gases estufa, principalmente o metano (CH4), liberado pelos animais no processo de digestão, serão originários da pecuária. O índice foi considerado exagerado pelas entidades setoriais do agronegócio e provocou um reboliço, na tentativa de contestar os dados.
Na realidade, o economista inglês, Nicholas Stern, elaborou um relatório sobre a situação do Planeta comparando os vários setores da economia e projetando os impactos sobre os sistemas naturais, atribuiu o índice de 30% sobre a agropecuária, como resultado do crescimento até 2030. O problema é simples: ocupar espaço, derrubar floresta, mudar a condição do solo, usar adubos nitrogenados (todo o modelo agrícola está baseado no tripé Nitrogênio, Fósforo e Potássio, de origem química), implantando monoculturas e grandes criações.
Trata-se literalmente da marcha para o oeste que no meio do caminho pegou o rumo do Norte, simplesmente porque não há mais o que ocupar no oeste. A cana tomou o espaço da pecuária em São Paulo, e os rebanhos foram subindo em direção ao cerrado. Hoje, existem 70 milhões de cabeças nos três estados do Centro-Oeste, somente nos dois Mato Grosso, são mais de 50 milhões. A partir daí, os rebanhos entraram floresta adentro. O Pará em 10 anos, mais que dobrou o rebanho de 6 para 12,8 milhões (segundo dados do censo agropecuário realizado pelo IBGE em 2006). O número já deve ser muito maior. Aqui cabe uma explicação. O Brasil até a década de 1960 tinha um rebanho inexpressivo para o tamanho do país, com exceção do Rio Grande do Sul, onde o gado europeu estava bem adaptado.
Maior invasão
A grande mudança na pecuária brasileira também começou na década de 1960, quando um grupo de criadores do Triângulo Mineiro (Uberaba) foram à Índia, atrás de reprodutores zebuínos. Trouxeram várias raças, mas a que mais evoluiu foi a Nelore, de Masdra, sul da Índia. Entraram oficialmente até 1962, quando as importações foram proibidas, menos de 10 mil reprodutores. Porém, os zebuínos suportam o calor dos trópicos. São capazes de parir todos os anos, alguns tem uma vida reprodutiva acima de 20 anos. A segunda parte desta história está ligada a disseminação das braquiárias, um capim com muitas variedades, que tomou conta do cerrado e cresce onde ninguém consegue sobreviver. Elas vieram da África. Foram melhoradas pela Embrapa e fechou-se o motor do salto no rebanho, que atualmente beira os 200 milhões de cabeças.
Na década de 1980, os pesquisadores conseguiram dar um jeito na acidez das terras do cerrado, que não valiam nem o preço do reduzido imposto que se pagava na época. Corrigiram com calcário, estabeleceram proporções razoáveis de NPK, mais a adaptação da semente da soja ao novo clima e o cerrado foi palco da maior invasão, depois do meio-oeste dos Estados Unidos.
Sulistas, principalmente gaúchos (20% da população do MS), mas também catarinenses e paranaenses, como Blairo e Eraí Maggi (primo) considerados os reis da soja. O último com 70 fazendas no Mato Grosso, transformado em maior produtor do país – 6 milhões de hectares, sendo 20%, ou 1,2 milhão ocupado pelos 20 maiores sojicultores. Nos últimos anos a concentração de terras e grandes plantadores se acentuou. Na região de Sapezal, onde o pai de Blairo Maggi, André Maggi (já falecido), construiu uma cidade, a média de propriedades é de 2.500 hectares. Em Sorriso, com 615 mil hectares de soja, onde recentemente foram divulgados amostras de agrotóxico em leite materno, a média é de 1 mil hectares. O Paraná ainda é o maior produtor de grãos do país, soma acima de 30 milhões de toneladas, principalmente, soja, milho e trigo. O Brasil consome 10 milhões de toneladas de trigo, produz 5 milhões e compra de fora, outros cinco. Nunca foi prioridade nacional ser autossuficiente em farinha.
Livrar a Amazônia
As pesquisas oficiais apontam para uma perda de Cerrado de 1,1% ao ano, desde a saga do oeste. A região sempre foi desprotegida pelo tipo de vegetação que apresenta, pequenas árvores, arbustos, retorcidos, consequência do alumínio, que está presente no solo, ajudou a formar o conceito de terra sem valor. Na verdade é um ambiente rico em espécies medicinais, mas que tem apenas 2,2% das unidades de conservação do país. E, fundamentalmente, é o local onde nascem os rios mais importantes do Pantanal, e por onde passa o São Francisco.
Na divisa do Mato Grosso do Sul com Mato Grosso, o rio Taquari deu um sinal de alerta, pouco reconhecido. Acima está a região de Rondonópolis, onde o Grupo Amaggi, responsável pela industrialização de 2,4 milhões de toneladas de soja, montou o seu império. As lavouras implantadas na década de 1980 não deixavam reserva nativa, nem os 20% obrigatório por lei. Resultado: areia, adubo, agrotóxico, tudo para o rio. No caso do Taquari o assoreamento tirou o rio do leito natural e ele espraiou pelo Pantanal de Coxim, invadindo fazendas tradicionais. Virou um alagado permanente.
Nessa mesma época, muitos pesquisadores agrícolas e especialistas em solos, como Mário Ferri, de São Paulo, imaginavam que era preferível ocupar o cerrado, e livrar a Amazônia da invasão da agricultura e da pecuária. A partir da década de 1990, as fronteiras foram rompidas. Pelo censo do IBGE de 2006, as áreas de lavoura na região norte, sem contar Amapá e Tocantins, somavam mais de 10 milhões de hectares. O Amazonas em 1996 tinha 235 mil hectares plantados, em 2006 eram mais de 2,3 milhões. No Pará, pulou de 808 mil para 3,2 milhões de hectares.
Se contarmos o norte do Mato Grosso e o oeste do Maranhã, regiões enquadradas na Amazônia, são mais de 40 milhões de hectares de pastagens, dos 157 milhões no Brasil. A região Norte tem um rebanho de 40 milhões de cabeças, quase 20% do rebanho nacional. Já ultrapassou o abate de 10 milhões de cabeças ao ano. Parte dessa carne é consumida em São Paulo. O Acre tem quase 2 milhões de cabeças. A maioria absoluta de Nelore ou animais cruzados (mistos). Não é à toa que o Brasil é o maior exportador de carne bovina do mundo, com mais de 1 milhão de toneladas, e ainda tem um consumo médio acima de 30 kg por habitante.
Gente de peso
A última fronteira de ocupação chama-se Mapito, sigla que envolve as regiões sul do Maranhã e Piauí e norte do Tocantins. São 3,3 milhões de hectares de soja e um pouco de milho e algodão. Ali perto, mais abaixo no mapa, mas também ganhando espaço, a região do oeste baiano, concentrada em Barreiras, Luis Eduardo Magalhães e São Desidério, com mais de 500 mil hectares de lavouras de soja. Região do aquífero Urucuia (vai do Piauí até o noroeste de Minas), e por isso mesmo, região com lavouras irrigadas por pivô central, capaz de cobrir uma área de 120 hectares, apenas com um equipamento. E os líderes e prefeitos anunciam que existem mais 3 milhões de hectares para ocupar.
E atrai mesmo. Gente de peso. Fundos privados, fundos de pensão estrangeiros, fundos de risco. A começar pelos grandes conglomerados nacionais. A Cosan, agora unida a Schell na Raízen, tem uma empresa especializada na compra de terras - a Radar. Este ano, a previsão da Radar era investir US$850 milhões e adquirir 60 fazendas. Eles já compraram 180 fazendas nos estados do centro-oeste, Tocantins, Maranhão e oeste da Bahia. A meta são 350 mil hectares, Compram, plantam ou arrendam. Em dois anos conseguiram uma valorização de 50% nos preços. Um detalhe: a Radar é controlada pela Cosan, que detém 18,9% do capital, o restante é de fundos de pensão dos Estados Unidos.
A SLC, que já foi fabricante de colheitadeiras (vendeu para a John Deer), possui 250 mil hectares, é uma das maiores produtoras de soja do país. Criou a Land & Co, especializada na com pra de terras, captando dinheiro no exterior de fundos interessados. O projeto era recolher US$300 milhões. Mas o governo federal baixou uma medida limitando a área de terras que estrangeiros podem adquirir – no máximo 5% do perímetro de um município.
A serpente nasce pequena
A previsão da Radar, por exemplo, é que o comércio de commodities está em franca expansão, porque em 2020 a soja deverá ocupar 29 milhões de hectares (acréscimo de 5 milhões) e a cana dobrar sua área de plantio – de 7 para 14 milhões de hectares. Nessa onda globalizada a Nai Commercial Properties, uma multinacional do ramo imobiliário, montou sede no Brasil. Em 2010, intermediou 30 negócios envolvendo grandes áreas, acima de 10 mil hectares. A maior delas na região de Pedro Afonso (TO), de 40 mil hectares, onde a Bunge inaugurou recentemente uma usina de etanol. A um custo de R$6 mil, uma venda de R$240 milhões.
A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), divulgou um relatório que no ano passado US$ 14 bilhões foram usados na compra de terras. Lógico que os preços subiram. No oeste baiano, o que era R$5 mil/ha, agora custa R$10 mil. A Nai, a múlti imobiliária diz que tem 200 fundos privados estrangeiros interessados na compra de terras no Brasil. Estão cadastrados.
Um fenômeno também global. Compram-se terras na África, a preço de banana, US$1,5 o hectare. Ou arrendam-se a US$12 , como a empresa Addax, suíça, fez no ano passado, pretende produzir cana-de-açúcar em Serra Leoa, país com 6 milhões de habitantes, onde até pouco tempo a guerra impunha a realidade. Os indianos querem investir US$2,5 bilhões em lavouras de palma, arroz e milho na Etiópia, Tanzânia e Uganda. A FAO informa que os estrangeiros compraram entre 50 e 800 milhões de hectares na África e América do Sul. A Coreia do Sul tem 700 mi hectares no Sudão e a Arábia Saudita 500 mil hectares na Tanzânia.
O Grupo Pinesso, com 80 mil hectares de soja e algodão no Mao Grosso, começou uma experiência de 100 hectares de algodão no Sudão, na zona de influência do rio Nilo. Mas pretende implantar 100 mil hectares. As primeiras informações são positivas, ao invés de 18 aplicações de agrotóxicos, lá são necessárias 3 ou 4.
“A serpente nasce pequena”, como diz José Grazziano da Silva, diretor da FAO, recém-eleito. Perto dos 655 milhões de hectares de lavouras no Planeta a investida de estrangeiros em terras africanas, ou americanas pode ser pequena. Entretanto, a tendência é preocupante, porque os que chegam sempre estão com a razão, e normalmente esquecem os ocupantes, muitas vezes, os verdadeiros proprietários – índios e comunidades nativas, enfim, o povo do lugar.
Aqui pertinho temos o caso uruguaio. País pequeno, mais de 6 milhões de hectares comprados por estrangeiros, grande maioria brasileiros e argentinos. Depois transformado em polo produtor de celulose, com imensas plantações de eucalipto. Os pequenos produtores do interior sumiram, ou estão estrangulados.
Mágica é química
O Brasil também tem o outro lado do ofuscante e poderoso agronegócio. A população rural do país diminuiu de 24% para 16,7% entre 1991 e 2006. O número de empregos no setor rural caiu de 23,395 milhões em 1985 para 16,568 milhões em 2006. O número de pequenas propriedades, quer dizer, a área ocupada por elas, diminuiu de 9,987 milhões de hectares para 7,799 milhões de hectares. Ou seja, quase 2 milhões de hectares a menos, o equivalente a 200 mil propriedades em torno de 10 hectares. Que sumiram do mapa. As com mais de 1 mil hectares somam 146,5 milhões.
Até 2050, o aumento na produção de grãos previsto é de 70%, nesse padrão atual. Vai passar de 2,234 bilhões de toneladas para 3,570 bilhões. A maior produção é de milho, 878 milhões nos números do Departamento de Agricultura dos EUA, seguido por trigo 676 milhões e arroz 449 milhões de toneladas. A humanidade tem sua alimentação básica, em mais da metade dos atuais 7 bilhões de habitantes, nestes três grãozinhos. Das 7 mil plantas domesticadas pela espécie humana, somente três se tornaram as mais consumidas. Somando os 276 milhões de toneladas de soja, que se traduzem em alguns milhões de toneladas de carne (boi, galinha e porcos), está fechado o quadro da alimentação humana no Planeta.
Claro que para chegar a tal ponto de produtividade e expansão, tem um segredo muito bem conhecido, pouco divulgado e analisado: os químicos responsáveis pelo crescimento das plantas, pelo combate aos insetos e as “ervas daninhas”, digamos, as invasoras da propriedade alheia. O Brasil é o campeão, bateu os Estados Unidos este ano, vai gastar US$8 bilhões de dólares em herbicidas, inseticidas, fungicidas, acaricidas, ou seja, agrotóxicos. Para quem gosta de transparência: venenos.
Antigamente o símbolo das embalagens desses produtos era uma caveira no meio de dois ossos, para ficar bem claro o perigo que representam. Na era moderna, onde a civilização eletrônica e extremamente informada, as embalagens são coloridas, de plástico, e muitas vezes confundidas com refrigerantes, quando o líquido escuro é diluído, no caso das verduras e dos legumes. A vida é moderna, mas os venenos são obrigatórios. No caso do Brasil a quantidade oficial passa de 1 milhão de toneladas. O contrabando faz parte, como confirmam as apreensões do primeiro semestre de 2011 (20 toneladas). O Sindicato da Indústria de Defensivos Agrícolas (Sindag), divulga a falsificação e o consequente contrabando em 9% do volume usado. O Sindicato dos Auditores da Receita Federal, considera que 30% dos produtos usados no Brasil não tem origem conhecida. No ano passado foram 230 mil toneladas importadas, 20% da China e 20% da Argentina. O problema não são somente as falsificações, mas produtos banidos, como DDT, o mais conhecido dos organoclorados, continuam sendo usados.
Pássaros não voltam
As descobertas, em 1938, pelo cientista Paul Muller do DDT revelam uma ironia trágica. Na época, era usado até para combater traças na roupa de casa. Era algo milagroso. Em 1948, o cientista ganhou o Prêmio Nobel de Medicina. Calcula-se que 3 milhões de toneladas de DDT tenham sido produzidas até a década de 1970, quando foi proibido nos Estados Unidos. Na Amazônia e em outras regiões tropicais continua sendo empregado no combate ao mosquito da malária. Funcionários da Sucam (Superintendência de Combate a Malária), ainda lutam na justiça para receber indenização pela contaminação.
O mesmo não aconteceu com os milhares de vietnamitas – entre 650 mil e 4 milhões- da Federação Vietnamita das Vítimas do Agente Laranja, também conhecido como 2,4-D, despejado nas florestas do país, durante a guerra na década de 1960. Os tribunais americanos não reconheceram os direitos dos vietnamitas, mas a indústria química pagou US$180 milhões de indenizações a 15 mil veteranos do exército dos Estados Unidos. O 2,4-D continua sendo usado como desfolhante, para matar plantas. Seu nome é decorrente da cor dos tambores, que identificavam o produto e a empresa fabricante, quando chegava ao front.
Em 1962, uma cientista americana, Raquel Carson, denunciou pela primeira vez as consequências da contaminação de agentes químicos em seres humanos e na vida natural. O livro “Primavera Silenciosa” foi lançado no Brasil em 1964, logo expurgado. O título traduz uma situação real. Numa determinada primavera os pássaros migratórios não voltaram. É como se a primavera no Brasil iniciasse sem o canto do sabiá laranjeira (do papo laranja). No caso dos Estados Unidos foram os papos-roxos, que costumavam procurar minhocas no solo, junto aos Olmos, árvore típica do país, que tinham sido tratados com DDT, contra ataque de insetos. Os pássaros comeram minhocas envenenadas e morreram.
Sobre contaminação de químicos, no mundo de hoje, é absolutamente impossível fazer qualquer comparativo. Porque todos os seres vivos do Planeta tem algum tipo de contaminação. Não se pode comparar, ter uma testemunha referência, que esteja imune.
O DDT já foi encontrado no leite de ursas na maternidade do Svalbart, um arquipélago perto do Ártico, pertencente à Noruega – maternidade onde muitos ursos procriam. As moléculas desses venenos organoclorados ou fosforados grudam na gordura, qualquer tipo de gordura. E o efeito vai se acumulando. Pode durar décadas. Outros evaporam, após seis horas de aplicação. As moléculas viajam por quilômetros, até encontrar um ponto de fixação, que pode ser um animal, um vegetal, ou simplesmente, um córrego.
Campeão de agrotóxicos
No Brasil, por uma questão óbvia, é a soja que mais usa agrotóxicos: 44%, seguido pelo algodão (11%), cana (9%) e o milho (8%). As quantidades na safra 2009-2010 foram: 530 mil toneladas para soja (23,2 milhões de hectares), 143,7 mil toneladas nas lavouras de milho, 70,9 mil na cana e 69,6 mil no algodão, os dois últimos com áreas menores.
Os agrotóxicos mais vendidos são herbicidas, usados no combate as plantas invasoras. Foram 632,2 mil toneladas, com faturamento de R$2,5 bilhões. Em segundo lugar, os inseticidas com faturamento de R$1,9 bilhão e os fungicidas com receita de R$1,7 bilhão. Todos os dados são do Sindag. Aqui cabe outra explicação.
Na década de 1990, a indústria química começou a comprar as empresas produtoras de sementes. Foi nesta época que iniciaram os experimentos com os transgênicos, já ao nível comercial. A Monsanto, que domina o mercado de transgênicos no mundo, iniciou este movimento. A razão é muito simples: planta transgênica reage com o químico, no caso o herbicida, da mesma empresa. A planta é imune ao veneno. Em 1999, num congresso mundial da Monsanto, os executivos da empresa previam quem em 15, 20 anos, todas as sementes seriam transgênicas.
Em parte, as previsões se confirmaram. No caso da soja, a maior parte da produção é transgênica, principalmente nos Estados Unidos (83 milhões de toneladas), na Argentina (produção de 55 milhões de toneladas), e no Brasil a maior parte aderiu. O sojicultor compra a semente e o químico correspondente. As empresas usam como argumento a queda no número de agrotóxicos utilizados nas lavouras. Porém, cresceu na mesma intensidade, o volume de herbicidas. No caso do Brasil, houve aumento no uso de fungicidas, consequência da ferrugem asiática, um fungo que ataca as lavouras.
O que interessa mesmo é o seguinte: o Brasil é o campeão no uso de agrotóxicos no mundo. Os Estados Unidos que tem uma área de 64 milhões de hectares com lavouras de soja e milho, principalmente, registraram queda de 4,8% no volume de agrotóxicos, entre 1998 e 2007, segundo a Agência Ambiental (EPA). Ou seja, tem 50% mais de área, além disso, produzem mais que o dobro. Com destaque para o milho: a previsão é de 378 milhões de toneladas na próxima safra ( 40% para produção de etanol) . Aliás, os Estados Unidos representam 55% do comércio mundial de milho, 44% da soja, 41% do algodão e 28% do trigo.
Em relação ao trigo existem mudanças, porque se formou um corredor de exportação no Mar Negro, e envolve a Rússia (26 milhões de hectares), Ucrânia (10,7 milhões) e o Cazaquistão (14 milhões de hectares). Outros países do leste europeu também ampliaram suas áreas de plantio, assim como alguns africanos, como a Nigéria (7,5 milhões de hectares).
As empresas também rebatem que nos trópicos tem mais pragas. Deve ser isso. Dos 1,4 mil produtos registrados no Brasil como agrotóxicos, somente 21 são biológicos. As práticas de combate biológico, usando estratégias como dos feromônios, orientadores sexuais, ou, insetos que combatem outros, considerados pragas em lavouras – como a broca da cana -, já são usados largamente, mesmo no Brasil. Não é por outra razão que os plantios de orgânicos crescem intensamente pelo Planeta, e alguns organismos internacionais relatam que é um mercado de US$34 bilhões. Os estadunidenses são os maiores compradores, de países da Europa, particularmente, da Espanha.
Proibido na Europa
Agora, uma declaração ao jornal Valor Econômico, recentemente, do diretor geral da Syngenta, a maior fabricante de agrotóxicos do mundo (franco-suíça):
- "O objetivo é sermos capazes de dizer ao produtor qual combinação de semente e defensivo em sua condição específica vai entregar os melhores resultados”, disse Laércio Giampani, diretor no Brasil, no dia do evento em Minnesota (EUA), que formalizava a união da unidade de sementes com a unidade de “Proteção de Cultivo”, um mercado calculado pela multinacional em US$70 bilhões no mundo. O mais significativo do evento foram as previsões: em 2025, o mercado mundial será US$200 bilhões, quando a Syngenta deverá faturar US$17 bilhões. Em 2010, a empresa faturou US$8,8 bilhões com a venda de agrotóxicos e US$2,8 bilhões com sementes. No Brasil, o faturamento foi de US$1,8 bi. A Syngenta é a terceira na venda de sementes transgênicas, mercado liderado pela Monsanto. Em 2008, a Monsanto tinha 647 patentes sobre plantas transgênicas. E tem uma equipe muito grande de advogados especializados em cobranças judiciais, pelo uso das sementes e não pagamento de royalties.
Em 2014, a União Europeia já anunciou que vai barrar a maioria dos agrotóxicos usados em lavouras no Brasil. Dos 1.111 produtos analisados, serão permitidos 215. O Sindag, através de seus representantes, calcula que os 49 inseticidas utilizados pelos produtores brasileiros, 36 serão barrados. No Brasil o endossulfam, segundo inseticida mais usado em lavouras, incluindo café, cacau, foi proibido na Europa em 2005. A Parationa Metilíca, um organofosforado, um dos quatro mais usados em plantações de arroz, milho, alho, batata, feijão, foi proibido na Europa em 2003. O Metamidofós, muito empregado nas lavouras de verduras e legumes (tomate), vai ser proibido no Brasil, a partir de 2012. Já foi banido na década passado nos países desenvolvidos.
Boi, soja e eucalipto
A previsão do Banco Mundial é de alta de 20% dos alimentos até 2018. Os índices de commodities, que os investidores internacionais usam para aplicar no mercado futuro, registraram este ano US$410 bilhões, inclui os metais. Mas US$60 bilhões, foram quantificados como acréscimo no último ano nas mercadorias agrícolas, com preços internacionais, como soja, açúcar, café, trigo, milho, arroz, todos com preço acima, em relação a 2007, período pré-crise financeira. Quer dizer, a comida virou alvo da especulação financeira mundial.
Os ingredientes da Marcha dos Insensatos se encaixam como um jogo de cartas marcadas, cujo final ainda é desconhecido. No entanto, sabe-se o que os resultados podem proporcionar. Além das lavouras de exportação temos que considerar a expansão do eucalipto, não somente como matéria-prima da celulose, como cavacos para produzir energia, ou carvão nos fornos das siderúrgicas. Um exemplo prático. O “Plano 2024” da Suzano Papel e Celulose, prevê uma fábrica de celulose no Maranhã em 2013 e outra no Piauí em 2014, fora outras metas para a Suzano Energia Renovável, tudo para comemorar os 100 anos da empresa. Em Três Lagoas (MS), na divisa com Andradina (SP), a família Batista, dona do JBS, maior produtora de carne do mundo (30,4% de participação do BNDES), está construindo a Eldorado Brasil, outra fábrica de celulose. O sócio (25%) é o advogado Mário Celso Lopez, conhecido como vendedor e comprador de terras no cerrado. Declarou que já vendeu 1 milhão de hectares no Mato Grosso e 500 mil hectares no MS. Tem um confinamento de bois em Andradina, até recentemente, com capacidade para 50 mil cabeças. A Eldorado Brasil está para se fundir com uma empresa florestal, onde participam os mesmos sócios, além dos fundos Petros, Previ e Funcef. Objetivo envolve o plantio de 250 mil hectares de eucalipto nos dois estados.
Três Lagoas virou um polo industrial de celulose, conta com a International Paper na área de papel, e a Fibria, com fábrica produzindo mais de 1 milhão de toneladas/ano e que será duplicada – Fibria, resultado da união da Votorantim Celulose e Aracruz. Portanto temos um tripé: boi, soja e eucalipto se expandindo no cerrado e entrando na Amazônia. A cana corre por fora. A Marcha dos Insensatos segue o rumo norte.
Insensatos ou dementes
Em 1999, um grupo de cientistas de todas as áreas se reuniu em Macapá, para fazer um profundo diagnóstico sobre a Amazônia. O resultado é um livro, completamente documentado sobre espécies, clima, áreas diferenciadas. O que chama a atenção é a quantidade de vapor que a floresta amazônica produz: 7 trilhões de toneladas por ano. Grande parte da chuva que cai na América do Sul tem origem na floresta. Ela é a maior fonte de vapor continental do Planeta, conforme as informações do físico Paulo Artaxo, do Laboratório de Física Atmosférica da USP. Ele tem relatado constantemente um evento que poderá ocorrer com a floresta, quando ela atingir 20% de desmatamento. Trata-se do ponto de equilíbrio, a partir de tal marco, a floresta entra em regressão. Um número que está em discussão. De qualquer maneira o número oficial do desmatamento da Amazônia é de 18% da área total.
Como a maior fonte de vapor é óbvio que a Amazônia é um dos componentes do clima mundial. Ou seja, se a Marcha dos Insensatos seguir em frente, atingiremos o ponto de regressão. Mais cedo do que se esperava. Sem floresta e sem umidade, as chuvas diminuirão. Parece claro. Porém, a visão mais comum no agronegócio brasileiro é a floresta como um inferno verde, não produz nada. É por isso, que no início, defini esta marcha – acompanhada por mim nos últimos 20 anos, 13 deles morando em Campo Grande (MS) - como dos Insensatos. Podem ser indivíduos sem senso, por consequência, falta de juízo. Ou, também existe, uma segunda definição no dicionário – demente. Na verdade, com o andar da Marcha, saberemos se ela será dos Insensatos ou dos Dementes.

Fotos: Greenpeace

A Guerra da Otan contra a Líbia é uma guerra contra o desenvolvimento da África

REBEL GRIOT

“A África é a chave do desenvolvimento econômico mundial”; esse recente título do Washington Post é de uma honestidade refrescante, mas não verdadeiramente um furo de reportagem. A mão de obra e os recursos africanos – como diria qualquer historiador econômico decente – são a chave do desenvolvimento econômico há séculos.

Quando os europeus descobriram a América há 500 anos seu sistema econômico se disseminou por outros lugares. As potências européias tomaram cada vez mais consciência de que o equilíbrio de poderes nos seus países dependia da força que podiam tirar de suas colônias. O imperialismo (quer dizer, o capitalismo) foi a característica essencial da estrutura econômica mundial desde então.

Para a África isso se traduziu na pilhagem sistemática e contínua de sua mão de obra e de seus recursos o que não deixou de acontecer até o dia de hoje. Inicialmente foi o rapto brutal de dezenas de milhares de africanos para substituir a força de trabalho nativa da América dizimada pelos europeus. O comércio de escravos foi devastador para as economias africanas que raramente foram capazes de suportar a queda e a destruição de sua população; mas os capitais assim acumulados pelos proprietários das plantations no Caribe financiaram a revolução industrial. Ao longo dos séculos 18 e 19 cada vez mais matérias preciosas foram descobertas na África (especialmente ferro, borracha, ouro e prata) e o roubo de terras e de recursos finalmente conduziu ao que se chamou “A corrida para a África” quando no espaço de alguns anos os europeus repartiram entre si todo um continente inteiro (salvo a Etiópia). Assim a economia foi largamente mundializada e a África continua a fornecer a base do desenvolvimento industrial europeu, por isso os africanos perderam suas terras, seus recursos naturais e foram forçados a trabalhar para os europeus nas minas de ouro e nas plantations de borracha.

Após a segunda Guerra Mundial as potências européias, enfraquecidas por anos de guerra industrial de umas contra as outras, são levadas a adaptar o colonialismo às suas novas situações. Os movimentos de libertação se reforçam nas colônias e as potências européias se vêm confrontadas a uma nova realidade econômica – o custo da repressão à “agitação dos nativos” torna-se próximo do nível de riquezas que eles extraem dessas colônias. A solução que eles encontraram foi batizada de “neocolonialismo” por Kwame Nkrumah; ela consistia em confiar atributos formais de poder a um grupo de testas de ferro escolhidos com muito cuidado para que explorar seus países como antes. Em outras palavras, a adaptação do colonialismo permite fazer os africanos arcarem eles mesmos o custo e o fardo da repressão às suas próprias populações.

Na prática isso não foi assim tão simples. Por toda Ásia, África e América Latina houve movimentos de massas que reclamaram o controle de seus próprios recursos e em muitos lugares esses movimentos conseguiram tomar o poder – por vezes pela guerrilha, por vezes pelas urnas. As potências européias – de agora em diante conduzidas por seu último pimpolho e protegido, os EUA – travaram guerras implacáveis para por fim a esses movimentos. Essa luta e não só a “guerra fria” é o que caracteriza a história das relações internacionais do pós-guerra.

Até hoje o neocolonialismo foi um sucesso para os europeus e os EUA. O papel da África como fornecedor de mão de obra barata, para não dizer escravizada, e de minerais não diminuiu. A pobreza e a desunião foram frequentemente os principais fatores que permitiram a manutenção dessa exploração. Entretanto sérias ameaças passaram a se apresentar a partir de certo momento sobre esses dois fatores.

Os investimentos chineses na África nos últimos 10 anos contribuíram para o crescimento de uma indústria e infra-estrutura africanas que começam fazer efeitos benéficos sobre o nível de vida de certas populações. Na China, graças a essa política, houve uma redução drástica da pobreza e o país está em vias de se tornar a primeira potência econômica do mundo. Se a África segue esse exemplo, ou algum outro do mesmo gênero, isso poderá ocasionar o fim de 500 anos de pilhagem das riquezas da África pelo ocidente.

Para impedir essa “ameaça sobre o desenvolvimento da África” os europeus e os EUA empregaram a única coisa que conhecem – as armas. Há 4 anos os EUA colocaram em foco um novo “centro de controle e de comando” para submeter militarmente a África que tem o nome de AFRICOM. O problema para os americanos foi que nenhum país da África quis acolher o AFRICOM em seu território. De fato até bem recentemente a África se distinguia por ser o único continente que não continha bases americanas. Em verdade isso acontecia em grande parte pelos esforços do governo da Líbia.

Antes que a revolução de Kadafi em 1969 derrubasse o rei Idris, sustentado pelos ingleses, a Líbia abrigava uma das maiores bases americanas, a base aérea de Wheelus; mas no curso do primeiro ano da revolução líbia ela foi fechada e todo o pessoal militar expulso do país.

Nos últimos anos Kadafi trabalhava ativamente contra o AFRICOM. Quando os EUA ofereciam dinheiro a algum país da África para acolher uma base norte-americana no continente, Kadafi oferecia o dobro para que o país recusasse. Em 2008 essa oposição se cristalizou sob a forma de uma rejeição formal do AFRICOM pela União Africana.

O que poderia ser talvez ainda mais inquietante para a hegemonia euro-norte-americana sobre o continente era o grande montante de dinheiro que Kadafi consagrava ao desenvolvimento da África. O governo líbio foi sem sombra de dúvida o maior investidor do primeiro satélite africano lançado em 2007 que levou a África a economizar 500 milhões de dólares que lhe custava antes a utilização dos satélites europeus. Pior ainda para as potências coloniais, a Líbia disponibilizou 30 milhões de dólares à União Africana para três projetos financeiros destinados a acabar com a dependência africana dos financiamentos ocidentais. A banca de investimentos africanos – com seu lugar na Líbia – deveria investir no desenvolvimento da África sem juros, o que ameaçaria seriamente a dominação do Fundo Monetário Internacional sobre a África – um instrumento capital para manter a África na pobreza. E Kadafi dirigia a entrada em cena na União Africana de uma nova moeda africana indexada ao ouro o que tinha o objetivo acabar com mais uma ferida que colocava a África à mercê do ocidente, 42 milhões de dólares já tinham sido gastos nesse projeto – e novamente a maior parte desses recursos disponibilizados pela Líbia.

A guerra da OTAN contra a Líbia tem por finalidade acabar com o projeto socialista, anti-imperialista e pan-africano da Líbia, ponta de lança de um movimento destinado a reforçar a independência e a unidade da África. Os rebeldes claramente expuseram seu racismo virulento desde o início de sua subversão prendendo e executando milhares de trabalhadores e estudantes africanos negros. Todos os fundos de desenvolvimento para os projetos descritos acima foram “congelados” pelos países da OTAN e estão sendo destinados aos seus companheiros do Conselho de transição na Líbia para comprar armas e facilitar a guerra contra Kadafi.

Para a África a guerra está longe de terminar. O continente africano deve se dar conta de que a agressão da OTAN à Líbia é um sinal de desespero, impotência e incapacidade de impedir o inevitável crescimento da força da África no cenário internacional.

A África deve observar as lições dadas pela Líbia e continuar a consolidar a unidade pan-africana e a resistir ao AFRICOM. Haverá ainda muitos líbios que sustentarão os africanos nessa tarefa.

Artigo original publicado em 5 de setembro no site:
HTTP://legrandsoir.info/la-guerre-de-l-otan-contre-la-líbia-est-une-guerre-contre-le-developpement-de-l-afrique-countercurrents.html

Exército começa a se reequipar com novos blindados e radares

 

Serão 2.044 carros blindados Guarani, além de radares Saber 60 e a nova família de fuzis Imbel  

O ministro da Defesa, Celso Amorim, visitou na terça-feira o Centro de Avaliações do Exército, na Restinga de Marambaia (RJ), para conhecer em detalhes três importantes programas de modernização de equipamentos militares: a viatura blindada de transporte de pessoal (VBTP) Guarani, o radar Saber 60 e a nova família de fuzis Imbel, que será fabricada para atender as três Forças Armadas do país.

São produtos de tecnologia nacional, desenvolvidos com apoio do Centro Tecnológico do Exército (CTEx) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação (MCTI). Amorim ressaltou a importância dos projetos para a modernização das Forças Armadas do país, sobretudo para o Exército, e para o desenvolvimento e capacitação da indústria de base de defesa, que vive hoje um novo momento, com perspectiva da ampliação dos investimentos a partir da recente edição das medidas de fomento a esse setor industrial.

“O Guarani foi desenvolvido com tecnologia brasileira. Representa a retomada da trajetória positiva de produção industrial nacional de blindados, paralisada depois de experiências bem-sucedidas do Urutu e do Cascavel. Essa retomada vai ser muito importante para o país”, ressaltou Amorim, parabenizando o Exército, dono da patente do projeto.

O VBTP Guarani realizou tiros contra alvos móveis e fixos, com 100% de acertos. Em seguida, mostrou sua mobilidade ultrapassando vários tipos de obstáculos e terrenos.

O protótipo do carro foi apresentado na LAAD (Latin American Aero & Defence), feira de Defesa no Riocentro, no Rio. Os 2.044 novos carros de transporte de pessoal foram comprados por R$ 6 bilhões, ou R$ 2,9 milhões cada. O Guarani é um blindado anfíbio de 18 toneladas e multifunção, com tração 6x6, e mede 6,91 metros de comprimento, por 2,7 metros de largura e 2,34 metros de altura. O veículo tem capacidade de transporte para 11 militares, incluindo o motorista e o atirador de metralhadora 50 milímetros, e pode ser aerotransportado. O blindado é descrito como tendo “simplicidade e robustez”, com elevada proteção balística. Uma das exigências da compra, pelo Exército, era que mais de 60% do conteúdo fosse nacional.

O novo veículo, de seis rodas, servirá de base para uma nova família de blindados multimissões, capaz de realizar ações de reconhecimento e apoio de fogo. Capaz de ser transportado por aviões Lockheed-Martin C-130 Hercules ou Embraer KC-390, o projeto atraiu o interesse das Forças Armadas da República Argentina, que enviou um grupo de oficiais do Exército para assistir a demonstração. “Fico muito contente que tenhamos a presença de militares argentinos, porque demonstra a possibilidade de integração industrial de nossa região (América do Sul)”, afirmou o ministro.

No início de setembro, Celso Amorim visitou a Argentina. Na ocasião, analisou com o ministro da Defesa do país vizinho, Arturo Puricelli, alguns projetos que poderiam ser realizados em conjunto. Uma das possibilidades estudadas no encontro foi o Guarani.

Durante a visita, a Orbisat entregou as duas primeiras unidades de série do radar Saber M-60. Com capacidade de detectar alvos aéreos a baixa altitude, com alcance máximo de 75km, o novo sistema será empregado pelos cinco grupos de artilharia antiaérea do Exército. “É o primeiro desse nível, com alta tecnologia, desenvolvido e produzido no Brasil. Será importante para proteção de nossas fronteiras e para segurança de grandes eventos”, comemorou o ministro.

As unidades recebidas, que serão entregues à Escola de Artilharia de Costa e Antiaérea (sediada na Vila Militar, no Rio de Janeiro) e ao 2º Grupo de Artilharia Antiaérea, localizado em Praia Grande (SP), integram um lote de nove equipamentos adquiridos pelo Exército Brasileiro.

Por último, o ministro Amorim conheceu os modelos de fuzis desenvolvidos pela Imbel, que serão fabricados nos calibres 7,62mm e 5,56mm. Equipados com os sistemas mais modernos para armas pessoais atraíram a atenção do ministro, que chegou a manejar um deles. Em seguida, ressaltou que a nova família de armas é a expressão da interoperabilidade. “Ele tem também uma característica relevante para a Defesa porque deverá ser padronizado e utilizado pelas três Forças”, completou.

14 de outubro de 2011

Quem é o povo no Brasil?

Quem é o povo no Brasil? (1)

O texto que publicamos nesta e nas próximas edições é um dos mais citados na historiografia do país – e, no entanto, um dos menos conhecidos.
"Raízes Históricas do Nacionalismo Brasileiro" é a aula inaugural de 1959 do curso regular do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), proferida a 12 de março daquele ano pelo historiador e general Nelson Werneck Sodré.
Pela importância do texto e pela raridade de sua publicação, optamos por não condensá-lo. Portanto, os leitores terão acesso à íntegra da aula de Nelson Werneck Sodré.
O ISEB – órgão do Ministério da Educação – congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o próprio Nelson Werneck Sodré. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento.
A Nação, portanto, era o centro desse pensamento – daí a adoção dos termos "nacionalismo" e "nacional-desenvolvimentismo". Respondendo àqueles que subestimavam o problema nacional, isto é, o rompimento das amarras de dependência que atrasavam o país, Ignácio Rangel, talvez o maior economista daquela época, definiu deste modo a questão: "A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos" (grifo nosso).
Muito interessante é que certas polêmicas da época reaparecem no debate de hoje – o motivo é simples: há problemas do país, basicamente sua relação com os centros imperialistas, que ainda não foram completamente resolvidos. Portanto, a luta de ideias – e não só de ideias - continua no mesmo terreno.
Uma dessas polêmicas – aliás, a central – estava plenamente acesa em março de 1959, quando a aula inaugural que publicamos foi proferida.
Em 1958, um grupo dentro do ISEB, tendo Hélio Jaguaribe por principal representante, formulara o que eles mesmos chamaram "nacionalismo de fins" (hoje se diria "nacionalismo de resultados").
Relendo o que Jaguaribe escreveu no livro "O nacionalismo na atualidade brasileira" é muito fácil perceber hoje que o "nacionalismo de fins" era um abandono do nacionalismo. Em suma, enunciava-se que o desenvolvimento não necessitava de uma nacionalização da produção. Para ser mais exato, postulava-se que a nacionalização era um entrave à "eficácia técnica". Em nome desta, os adeptos do "nacionalismo de fins" aceitavam – aliás, propunham – a privatização inclusive de setores estratégicos, como a petroquímica. Na situação da época, pior do que hoje, era claro o que significava essa privatização: o domínio de setores essenciais da economia nacional por monopólios externos, isto é, por multinacionais.
Não nos é, também, difícil, nos dias atuais, ver a que conduzia esse "desenvolvimentismo sem nacionalismo", como o chamou Nelson Werneck Sodré, até porque Hélio Jaguaribe se tornou, depois da ditadura, um patrono entre os tucanos. O desastre do governo Fernando Henrique é o próprio obituário do "nacionalismo de fins" - levado às suas últimas consequências, o "nacionalismo de fins" tornou-se o fim do nacionalismo e a tentativa de destruir a própria nação.
Porém, já em 1958-1959, a maioria do ISEB rechaçou o nacionalismo sem nacionalismo – e, na verdade, sem desenvolvimentismo - de Jaguaribe e outros.
A escolha de Nelson Werneck Sodré para realizar a aula inaugural de 1959 reflete a vitória, dentro do ISEB, do setor nacionalista sobre o outro setor, que, depois de sair da instituição, no correr dos anos se tornaria cada vez mais abertamente entreguista.
Já nos referimos, na apresentação de um escrito de Álvaro Vieira Pinto, ao ódio que a reação dedicou ao ISEB, à sua depredação em 1964 e às perseguições que sofreram seus membros logo que a ditadura se instalou.
No entanto, era impossível apagar da História a contribuição daqueles pensadores, de origem e formação tão diversas, mas unidos na tentativa de fazer do Brasil uma grande nação.
Portanto, passemos à aula de Nelson Werneck Sodré – agradecendo outra vez a este grande amigo que é o vereador Werner Rempel, de Santa Maria, Rio Grande do Sul, o envio do texto que hoje passamos a publicar.
CARLOS LOPES
NELSON WERNECK SODRÉ
Deixamos de lado, propositadamente, a fase em que o Brasil era colônia. É suficiente, para definir quem é o povo no Brasil, considerar algumas fases de sua existência autônoma: a da Independência, a da República, a da Revolução Brasileira. Convém repetir o que convencionamos aceitar como geral no conceito de povo, antes de situar os três momentos particulares referidos: em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive. Definindo, em relação a cada uma das três fases, quais as tarefas do desenvolvimento progressista (nos dois primeiros) ou progressista e revolucionário (no último), e quais as classes, camadas ou grupos que se empenharam (ou se empenham) na solução objetiva daquelas tarefas, teremos definido quem era (e quem é) o povo em cada uma.
INDEPENDÊNCIA
Comecemos pela mais antiga, a da Independência. A partir da segunda metade do século XVIII, particularmente no seu final, o problema político fundamental, no Brasil, é o da Independência: realizar a Independência constitui a tarefa do desenvolvimento progressista, naquela fase. Cada fase coloca os problemas quando esboça ou alcança as condições para resolvê-los. O problema da Independência, assim, não apareceu acidentalmente: condições externas e condições internas fizeram com que surgisse, esboçaram e depois definiram objetivamente as condições para resolvê-lo. A essência dos laços que subordinavam o Brasil a Portugal, na referida fase, encontrava-se no regime de monopólio comercial, que assegurava à metrópole participação espoliativa na renda das trocas entre a colônia e o exterior, no sentido da exportação e no sentido da importação, além da espoliação realizada com a tributação interna desigualmente distribuída, onerando os menos afortunados, como é da boa prática colonial em todos os tempos.
A quem interessava a Independência? Externamente, interessava a quem se propunha conquistar o mercado brasileiro: a burguesia europeia, em ascensão rápida com a Revolução Industrial, e particularmente a burguesia inglesa, classe dominante em seu país. A expansão burguesa era incompatível com os mercados fechados, com as áreas enclausuradas, com o monopólio comercial mantido pelas metrópoles em suas colônias. Quando as condições mundiais estivessem amadurecidas, e os fatos, — no caso, as guerras napoleônicas, — assinalassem o desencadeamento do processo, a Inglaterra, dominadora dos mares, isto é, da circulação mundial de mercadorias, participaria ativamente dos movimentos de autonomia na área ibérica do continente americano.
A quem interessava a Independência, internamente? Antes de verificar este ponto, convém ter uma ideia da estrutura social brasileira na época. Uma estimativa de 1823 admite a existência de quatro milhões de habitantes no Brasil. Desses quatro milhões, um milhão e duzentos mil são escravos. Do ponto de vista social, a população se reparte em: a) senhores de terras e de escravos, — que constituem a classe dominante, — e são em vastas áreas, senhores de terras e de servos, quando nelas existem relações feudais; b) pessoas livres, não vivendo da exploração do trabalho alheio, agrupadas numa camada intermediária, entre os senhores, de um lado, e os escravos e os servos, de outro, camada que recebera grande impulso com a atividade mineradora, compreendendo pequenos proprietários rurais, comerciantes, intelectuais, funcionários, clérigos, militares; c) trabalhadores submetidos ao regime da servidão; d) escravos.
Como os servos e escravos, tanto quanto os pequenos grupos de trabalhadores livres que se dispersam particularmente em áreas urbanas, não têm consciência política, embrutecidos que se acham pelo regime colonial, só participam da luta pela autonomia a classe dominante de senhores e a camada intermediária. Esta, incontestavelmente, participa desde muito cedo da referida luta e está presente em todos os movimentos precursores dela, movimentos que, como a Inconfidência Mineira, reúnem militares, padres e letrados. Pelas condições que caracterizam a vida colonial, entretanto, a luta pela autonomia só poderia ter possibilidades de vitória quando englobasse a classe dominante. E esta padece de vacilações constantes; só esposará o ideal da Independência em sua fase final, empolgando-o, para moldar o Estado segundo os seus interesses.
Está profundamente interessada no que a Independência tem de fundamental: a derrocada do monopólio de comércio. Suas vacilações, entretanto, não se prendem apenas à tradição colonial — quando era procuradora da metrópole aqui; prendem-se ainda ao temor de que a pressão externa contra o tráfico negreiro e o trabalho escravo encontre na autonomia oportunidade para alcançar seus objetivos, e prendem-se também ao temor de que o abalo social que a autonomia pode proporcionar traga-lhe ameaças ao domínio, particularmente no que se refere à ascensão do grupo mercantil. A camada intermediária também está interessada na autonomia, pela qual elementos seus já combateram e se sacrificaram, e não apenas os do grupo mercantil, mas muitos outros, os intelectuais, padres e militares à frente. Servos e escravos não têm consciência política do processo, embora acompanhem-no com o seu apoio, na medida do possível.
Se a tarefa do desenvolvimento progressista do Brasil, nessa fase histórica, é a realização da Independência, como vimos, e se o povo, em tal fase, é representado pelo conjunto de classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva daquela tarefa, o povo brasileiro abrange, então, todas as classes, camadas e grupos da sociedade brasileira. Claro está que cada uma com o seu coeficiente próprio de esforço e de interesse: a classe dominante com as suas vacilações e pronunciamento tardio; a camada intermediária com a sua vibração; as demais na medida da consciência política de seus elementos. Ocorre que essa composição política é transitória: conquistada a Independência, com a manutenção da estrutura colonial (e por isso mesmo não se trata de uma revolução), povo tornar-se-á outra coisa. Dele já não fará parte a classe dominante senhorial que tratará, na montagem do Estado, de afastar totalmente as demais classes, camadas e grupos do poder e da participação política, como veremos adiante.
Situemos, agora, a fase em que o país muda de regime, com a derrocada da monarquia. Qual era a tarefa progressista a realizar no Brasil, em tal momento? Era, certamente, a de liquidar o Império, que representava o atraso. O Brasil apresentava-se agora muito diferente: sua população atinge a catorze milhões de habitantes; nela, os escravos, ao fim da penúltima década do século, são cerca de setecentos mil. A área escravista reduziu-se muito e mantém-se em estagnação econômica; mas a área da servidão ampliou-se muito, quanto ao espaço, embora compreenda principalmente zonas fora do mercado interno. Dos catorze milhões de habitantes, admite-se que apenas trezentos mil sejam proprietários, compreendidos parentes e aderentes: constituem a classe dominante. Nela, a velha homogeneidade desapareceu, entretanto, verificando-se uma cisão: há uma parte que permanece ancorada nas relações de trabalho da escravidão ou da servidão, e outra parte que aceita, prefere ou adota relações de trabalho assalariado. Desapareceu a homogeneidade porque, em determinadas áreas, as velhas relações foram, a pouco e pouco, substituídas por novas relações.
O Brasil passou, na segunda metade do século XIX, por grandes alterações, realmente: as cidades se desenvolveram depressa, em algumas zonas a população urbana cresceu em poucos anos, o comércio se diversificou e se ampliou, apareceram pequenas indústrias de bens de consumo, o aparelho de Estado cresceu, surgindo o numeroso funcionalismo que desperta tantas controvérsias, mas a divisão do trabalho multiplicou também as suas formas, aparecendo atividades até então desconhecidas. As profissões ditas liberais passaram a atrair muita gente; desenvolveu-se o meio estudantil; atividades intelectuais começaram a ocupar espaço na sociedade urbana. Ora, tudo isso revelava o aumento da velha camada intermediária colocada entre senhores e escravos, ou entre senhores e servos, ou entre patrões e empregados. Aparece, agora, com fisionomia definida, tão definida quanto lhe permitem as próprias características, como classe média, ou pequena burguesia. É curioso notar que constitui uma peculiaridade brasileira, e não só brasileira, o fato de ser a pequena burguesia historicamente mais antiga do que a grande burguesia e do que o proletariado. Nos fins do século XIX, sua importância é destacada, quando a burguesia começa a definir-se, recrutada particularmente entre os latifundiários, e o proletariado dá os primeiros passos, recrutado principalmente no campesinato.
As relações de trabalho no campo sofrem grandes alterações também. Enquanto algumas áreas permanecem aferradas à escravidão, que só abandonam com o ato abolicionista, e outras permanecem aferradas à servidão, as que se desenvolvem economicamente excluem o trabalho escravo, que as entrava, e começam a operar com o trabalho assalariado, em parte com os elementos introduzidos pela imigração sistematizada. É um processo paralelo e conjugado em que os polos antagônicos crescem interligados, diferenciando nos latifundiários uma camada que passa a constituir a burguesia, e diferenciando nos trabalhadores uma camada que passa a constituir o proletariado e o semi-proletariado. Esse processo se desenvolve também nas áreas urbanas, onde proletariado e semi-proletariado aumentam lentamente seus contingentes. Com a extinção do trabalho escravo, permanecerão as relações feudais e semifeudais no campo, conjugadas ao latifúndio. Nas áreas urbanas, a burguesia amplia muito depressa o seu campo, com as atividades comerciais, industriais e bancárias.
Quem é o povo no Brasil? (2)
Continuação da edição anterior


Depois de consumada a República, as coisas já se tornaram mais difíceis. A classe dominante minoritária desligou-se, realmente, do conjunto em que se compunha com as outras classes, camadas e grupos sociais, constituindo o povo, e isolou-se no poder, a fim de desfrutá-lo sozinha. Mas encontrou grandes obstáculos para conseguir seu intento
NELSON WERNECK SODRÉ
O Império fora estabelecido como forma de servir a uma classe dominante homogênea, constituída pelos senhores de terras, que o eram também de escravos e de servos. Agora, as condições são outras, e ele já não atendia aos interesses da classe dominante cindida entre latifundiários, senhores de terras e de servos, e burgueses. Não atendia, com mais forte razão, aos interesses da pequena burguesia. Nem aos do reduzido proletariado; nem aos do semiproletariado; muito menos aos dos servos. A tarefa progressista, nas condições brasileiras dos fins do século XIX, consistia em liquidar o Império, não no que representava de formal e exterior, mas no que tinha de essencial: todas as velhas relações econômicas e políticas que entravavam o desenvolvimento do país. Que classes, camadas e grupos estavam interessadas, pelas suas condições objetivas, em liquidar as velhas instituições, tão profundamente ancoradas no período colonial e transferidas ao período autônomo? Se a Independência reunira o apoio de todas elas, com uma participação proporcional à força de cada uma e ao grau de consciência política de seus elementos, já a República não provocaria a unanimidade. As classes interessadas na implantação do novo regime compunham uma ampla frente, encabeçada pela burguesia nascente, a que se somavam a pequena burguesia, o proletariado, o semiproletariado e os servos. Como acontecera com a Independência, a burguesia nascente se mostrava vacilante; a pequena burguesia, que esposara muito antes o ideal republicano, era mais enérgica em suas manifestações; o reduzido proletariado e particularmente o semiproletariado não haviam alcançado ainda o grau de consciência política necessário a uma participação eficiente; e a servidão permanecia estática, isolada no vasto mundo rural. Quem constituía o povo, então? Estas classes, evidentemente, as que estavam interessadas na tarefa progressista, historicamente necessária, de criar a República. A classe latifundiária não fazia parte do povo. Seu último serviço fora a Independência.
Gerada a circunstância em que se consumaria a derrocada do velho regime, a classe média, representada particularmente pelo grupo militar, assumiu a direção dos acontecimentos. Mas a burguesia nascente apressou-se em compor as forças com o latifúndio para poder moldar o novo regime na conformidade com os seus interesses e os das velhas forças sociais. Como por ocasião da Independência, assiste-se a um processo claramente repartido em duas fases: a primeira, em que o povo, representado pelas classes interessadas na realização das tarefas progressistas, opera unido e consuma os atos concretos relativos à transformação historicamente necessária; a segunda, em que a classe dirigente, a que detém a hegemonia na composição que constitui o povo, torna-se a nova classe dominante, e comanda as alterações à medida dos seus interesses, preferindo a retomada da aliança com as forças do atraso à manutenção da aliança com as forças do avanço. A unidade tácita e eventual da primeira fase se desfaz; as contradições e os antagonismos de classe reaparecem.
Estas duas fases repetem-se em todas a oportunidades em que as transformações se limitam a substituir a dominação de uma minoria pela dominação de outra minoria que, transitoriamente, recebe o apoio da maioria e dele se vale para chegar ao poder. Isso não aconteceu apenas no Brasil, evidentemente; aconteceu por toda a parte, ao longo dos séculos, mas por toda a parte as condições para que os fatos se passassem desta maneira foram se tornando cada vez mais difíceis. No Brasil também: quando da Independência, a classe dominante dos senhores não teve muitas dificuldades para separar-se das outras classes, camadas e grupos sociais que com ela haviam constituído o povo, para a tarefa progressista da emancipação: essas dificuldades não faltaram, contudo, e foram assinaladas nas rebeliões provinciais que sacudiram o novo Império até os meados do século XIX. Mas os senhores venceram esses obstáculos, dominaram as rebeliões e tomaram conta totalmente do País, impondo-lhe as formas políticas e institucionais que lhes convinham.
Depois de consumada a República, as coisas já se tornaram mais difíceis. A classe dominante minoritária desligou-se, realmente, do conjunto em que se compunha com as outras classes, camadas e grupos sociais, constituindo o povo, e isolou-se no poder, a fim de desfrutá-lo sozinha. Mas encontrou grandes obstáculos para conseguir seu intento. A pequena burguesia brasileira, antiga na formação e antiga nas reivindicações políticas — e a República era uma dessas velhas reivindicações, esposada desde os tempos coloniais — defendeu bravamente as suas posições e houve necessidade de cruentos choques para desalojá-la. O florianismo foi a sua expressão específica e desempenhou papel importante na história política brasileira. Para manter-se no poder, a burguesia nascente foi obrigada a rearticular-se com a classe latifundiária, exercer ações de força e montar um sistema de repressão, a chamada "política dos governadores", que abrangia todo o País. Mais do que isso: foi obrigada a articular-se com forças externas para manter-se no poder. Quando Campos Sales, estabelecido o domínio das oligarquias, transaciona o funding com o imperialismo inglês, articula uma frente dominante que associa latifundiários, burguesia e imperialismo, contra o povo brasileiro.
Vimos, de forma prática, ligando o conceito às situações históricas concretas, quem era o povo brasileiro, em duas fases distintas. Estamos em condições, finalmente, de definir quem é o povo brasileiro, hoje, nos dias que correm, na fase histórica em que vivemos, de que participamos. Qual a tarefa progressista e revolucionária, na atual etapa da vida brasileira? Note-se: pela primeira vez aparece o conceito de revolução quanto às tarefas históricas, no que se refere ao nosso País. A Independência e a República, com efeito, foram tarefas progressistas, mas não foram tarefas revolucionárias: a classe dominante permaneceu a mesma, embora, no segundo caso, tivesse, depois da mudança do regime, repartido o poder com a nascente burguesia, continuando hegemônica. Agora, trata-se de liquidar, definitivamente, a classe latifundiária, tornada anacrônica pelo desenvolvimento do País. Trata-se de substituí-la. Trata-se, ainda, de quebrar a aliança que a vincula ao imperialismo, derrotando também a este e barrando-lhe a ingerência no processo nacional.
Qual a estrutura da sociedade brasileira, nos nossos dias? O Brasil mudou muito, realmente, em relação ao que era nos fins do século XIX, quando se instaurou a República. Participou, de uma forma ou de outra, de duas guerras mundiais, e sofreu os efeitos da maior crise atravessada pelo regime capitalista. As guerras e a crise tiveram importantes reflexos em nosso País: permitiram rápidos impulsos à sua industrialização e a conquista do mercado interno pelo produtor nacional. Foram pausas transitórias na pressão imperialista, e por isso tivemos oportunidades desafogadas de progredir mais depressa. Mas não foram causas do progresso. As causas acham-se sempre ancoradas no desenvolvimento das forças produtivas e na acumulação decorrente. O processo, nas fases especiais referidas, apenas teve seu ritmo acelerado. O fato é que, no século XX, o Brasil vai se tornando, cada vez mais depressa, um País capitalista. Não importa aqui, evidentemente, analisar as características desse capitalismo, que se desenvolve em País de economia dependente, com estrutura de produção entravada ainda pelos remanescentes coloniais. Importa constatar o fato.
O desenvolvimento capitalista, cuja demonstração mais evidente se encontra na forma e na rapidez como reagiu a economia nacional aos efeitos da crise de 1929, teve profundos reflexos na estrutura social do país e em sua vida política. À proporção que as relações capitalistas se ampliam, a burguesia brasileira cresce e se organiza, definindo as suas reivindicações políticas; e, paralelamente, crescem o proletariado e o semiproletariado, que se organizam, definindo aquele as suas reivindicações políticas. Por força dos mesmos efeitos, reduz-se o poder da classe dos latifundiários e no campo fermentam inquietações. Aumenta a pequena burguesia, que se multiplica em atividades, em disputa de melhores oportunidades. Está presente nos grandes episódios políticos: as campanhas de Rui Barbosa, o tenentismo, a revolução de 1930. No vasto mundo rural, o campesinato começa a acordar do sono secular: aparecem as revoluções camponesas, travestidas de fanatismo religioso; primeiro Canudos, depois o Contestado, e prossegue na luta dos posseiros e nas organizações atuais, as Ligas Camponesas, que tanto surpreendem e assustam os que acreditavam piamente na eternidade do conformismo.
A classe dos latifundiários continua dominante, mas suas perspectivas são agora cada vez mais estreitas. Somente subsiste mediante alianças: a) aliança com o imperialismo, de que aproveita os empréstimos constantes para financiamento de safras invendáveis, mas que já a protege mal, porque força a baixa dos preços dos produtos que ela coloca no exterior, explora a comercialização do que ela produz, e fala até em reforma agrária, que parece um sacrilégio; b) aliança com uma parte da grande burguesia comercial, bancária e mesmo industrial — que também se associa ao imperialismo,— desejosa de substituir os latifundiários como curadora deles, mas necessitando, internamente, de apoiar-se nesse velho e carunchoso reduto do atraso, pelo temor de transformações que ultrapassem os seus anseios e interesses. O imperialismo joga com as duas classes: a velha, que o serviu tão bem e que ele subordina tão dócil e facilmente com as manipulações do comércio exterior e com os empréstimos; e a nova, que ele subordina graças à associação de interesses e com novos empréstimos. Está presente por toda a parte: quando um brasileiro acende a luz, faz a comida, fala no telefone, toma o bonde, escova os dentes, raspa a barba, liga o rádio, vai ao cinema, em todos esses momentos encontra a presença do imperialismo, e a sua mão rapace, que lhe cobra o preço de todos os atos da vida cotidiana.
A burguesia cresceu muito, de fato, e comporta perfeitamente, agora, a divisão clássica em grande, média e pequena. Quanto ao imperialismo, ela está mais próxima dele quanto mais alta, mas em todos os três níveis há elementos que sofrem as suas ações e que as combatem. O proletariado desenvolveu-se amplamente também, nas áreas urbanas principalmente, mas também no campo. Os numerosos elementos antes submetidos a servidão começam a transitar para o semiproletariado: vastas áreas territoriais vão sendo integradas na economia de mercado, restringindo-se a servidão e semi-servidão. É o campesinato que oferece as alterações mais evidentes e denuncia mudanças inevitáveis. O latifúndio está condenado e a própria burguesia concorda com essa condenação, temendo, contudo, efetivá-la, pois ampara-se ainda, na luta contra o proletariado, nessa base secular do atraso. O campesinato está sacudindo, a pouco e pouco, as suas peias, e apresenta reivindicações recebidas com indisfarçável alarma pela classe dominante.
O poder está repartido entre a alta burguesia e os latifundiários, ligados, todos, ao imperialismo. Estas classes exercem o poder, porém, sob fiscalização rigorosa e combate continuado; as pressões provêm das demais classes, internamente, e do imperialismo, externamente. A resultante é, esporadicamente, favorável ao interesse nacional, porque mesmo a alta burguesia tem ainda frações ligadas aos interesses brasileiros, mas estes lances isolados resultam de circunstâncias especiais, como aquelas de que resultou a siderurgia do Estado, ou de campanhas tempestuosas, como a de que surgiu o monopólio na exploração petrolífera. O cerne da aliança que une a alta burguesia, a classe latifundiária e o imperialismo reside na política econômica e financeira, cujo aparelho é zelosamente defendido, passando e sucedendo-se governos aparentemente contrastantes mas permanecendo rigorosamente a mesma política e o mesmo grupo burocrático que representa a confiança da frente antinacional.
Na luta pelo poder, refletem-se, como é normal, as profundas contradições e antagonismos que assinalam a presente fase histórica e correspondem ao quadro real, à situação objetiva. Essa luta, aparentemente, é travada pelos partidos, mas quando praticamos uma análise mais atenta e verídica aparece o verdadeiro contorno dela, que ultrapassa amplamente o âmbito dos partidos, transferindo-se a outras organizações que suprem as deficiências com que os partidos colocam os termos daquela luta: os sindicatos, as organizações estudantis, as Forças Armadas, a Igreja, esta ainda com ponderável influência no campo. Tais organizações estão mobilizadas, participam ativamente da luta política. Vista em grande escala, essa luta apresenta em relevo o problema democrático.
O avultamento do problema democrático deriva de que a manutenção das liberdades democráticas permite o esclarecimento político, e o esclarecimento político permite a tomada de consciência pelo povo, e a tomada de consciência pelo povo permite a execução das tarefas progressistas que a fase histórica exige. Manter as liberdades democráticas, significa, pois, inevitavelmente, ter de enfrentar aquelas tarefas e resolvê-las, segundo a correlação de forças, quando as forças populares são muito mais poderosas do que as que estão interessadas na manutenção de uma estrutura condenada. Para mantê-la, entretanto, torna-se indispensável suprimir as liberdades democráticas. O clima democrático asfixia progressivamente as forças reacionárias, que se incompatibilizaram definitivamente com ele, pedem, imploram um governo de exceção, um golpe salvador, uma poderosa tranca na porta a impedir a entrada do progresso. Tentam, com a freqüência determinada pelas circunstâncias, a sinistra empresa, perdem sucessivamente todas as oportunidades, sendo levadas ao desespero. Mas procuram recuar em ordem, sempre, sacrificando alguns quadros de mais evidência, substituindo-os, recondicionando-os, e seguem outro caminho, o de apresentar uma fachada democrática que esconda o fundo antidemocrático. Buscam, por todos os meios, organizar uma democracia formal em que seja estigmatizado como subversivo tudo o que fere o poder exercido pelos latifundiários e pela alta burguesia em ligação com o imperialismo, em que seja punível qualquer pensamento contra o atraso e a violência de classe. Essa ânsia exasperada em deter a marcha inevitável da história, em sustar o processo político, ameaça o País com a guerra civil, pois as forças antinacionais não recuarão ante ato algum que lhes prolongue o domínio. Assim como no campo internacional o imperialismo preferiria conflagrar o mundo, com a guerra atômica, a ceder as suas posições, no campo nacional aquelas forças preferem conflagrar o País a ver derrotados os seus interesses. Poderão chegar a isso, ou não, entretanto, na conformidade com a correlação de forças sociais.
Quem é o povo no Brasil? (3)

Continuação da edição anterior
As alterações ocorridas na sociedade brasileira, na segunda metade do século XIX, que desembocariam na mudança de regime, consequentes às alterações ocorridas na estrutura econômica do País, pressionariam no sentido da inevitável ampliação dos direitos políticos
NELSON WERNECK SODRÉ
Quais as tarefas progressistas e revolucionárias desta fase histórica, então? Libertar o Brasil do imperialismo e do latifúndio. Realizá-las, significa afastar os poderosos entraves que se opõem violentamente ao progresso do país, permitindo o livre desenvolvimento de suas forças produtivas, já consideráveis, e o estabelecimento de novas relações de produção, compatíveis com os interesses do povo brasileiro; significa derrotar o imperialismo, alijando sua espoliação econômica e ingerência política, e integrar o latifúndio na economia de mercado, ampliando as relações capitalistas; significa, politicamente, assegurar a manutenção das liberdades democráticas, como meio que permite a tomada de consciência e a organização das classes populares; significa impedir que a reação conflagre o País, jugulando rigorosamente as tentativas libertadoras; significa, concretamente, nacionalizar as empresas monopolistas estrangeiras, que drenam para o exterior a acumulação interna, as de serviços públicos, as de energia e transportes, as de mineração, as de comercialização dos produtos nacionais exportáveis, as de arrecadação da poupança nacional; significa a execução de uma ampla reforma agrária que assegure ao campesinato a propriedade privada da terra e lhe dê condições para organizar-se econômica e politicamente e para produzir e vender a produção; significa, conseqüentemente, destruir os meios materiais que permitem ao imperialismo exportar a contra-revolução e influir na opinião pública e na orientação política interna; significa desligamento total de compromissos militares externos; significa relações amistosas com todos os povos.
Quais as classes sociais interessadas na gigantesca tarefa progressista e revolucionária com que nos defrontamos? Parte da alta, média e pequena burguesia, a parte de cada uma desligada de associação, compromisso ou subordinação ao imperialismo; o proletariado; o semiproletariado e o campesinato, com participação ativa na medida da consciência política que apresentem os seus componentes. Povo, no Brasil, hoje, assim, é o conjunto que compreende o campesinato, o semiproletariado, o proletariado; a pequena burguesia e as partes da alta e da média burguesia que têm seus interesses confundidos com o interesse nacional e lutam por este. É uma força majoritária inequívoca. Organizada, é invencível. Para organizá-la, entretanto, para permitir que seus componentes tomem consciência da realidade, superando o concentrado bombardeio da propaganda imperialista, arrimada em poderosos recursos materiais e detentora do aparelho de difusão do pensamento, faz-se indispensável o regime democrático, de liberdade de pensamento, de reunião e de associação. Estão excluídos do povo, pois, nesta fase histórica, e agora para sempre, enquanto classes, os latifundiários, a alta burguesia e a média comprometidos com o imperialismo, como os elementos da pequena burguesia que o servem. É o conjunto das classes, camadas e grupos sociais que compõem o povo que representa, assim, o que existe de nacional em nós.
O povo, entretanto, agora como em fases anteriores, divide-se em vanguarda e massa. Massa é a parte do povo que tem pouca ou nenhuma consciência de seus próprios interesses, que não se organizou ainda para defendê-los, que não foi mobilizada ainda para tal fim. Faz parte das tarefas da vanguarda do povo, consequentemente, educar e dirigir as massas do povo. Só sob regime democrático, na vigência das liberdades democráticas, isto é possível, e é justamente por isso que as forças reacionárias se opõem desesperadamente à vigência daquelas liberdades, e permanecem profunda e vitalmente interessadas em impedir que as massas se esclareçam, tomem consciência de seus interesses e das formas de defendê-los, e se organizem para isso. Embora disponham de poderosos recursos e do domínio quase total do aparelho de difusão do pensamento e influam, por isso, ainda bastante sobre as massas, estas lêem no livro da vida, que é muito mais rico em ensinamentos do que os livros impressos ou a palavra falada, e a realidade as ensina, concretamente, todos os dias.
O que diferencia a tarefa progressista de hoje das tarefas progressistas do passado é a amplitude de que se reveste sob as condições atuais. O que a faz revolucionária, como em alguns casos do passado, mas não no Brasil, é que a transformação agora incluirá a substituição da classe dominante. O que a torna específica do nosso tempo, na perspectiva geral do mundo, isto é, o que ela apresenta de novo, enquanto revolucionária, e peculiar ao caso brasileiro, mas também nos casos idênticos ao do Brasil, que os há, é que não se processará mais a simples substituição de uma minoria por outra minoria, apoiada esta, tácita ou conscientemente, pela maioria que, somada com aquela minoria, constitui eventualmente o povo. O novo, no processo político, está justamente em que a classe dominante minoritária, ou a associação de classes dominantes minoritárias — no caso, principalmente latifundiários e parte da alta burguesia — não será substituída por uma nova classe dominante minoritária, mas por todo o conjunto que compreende o povo. Isto é: não será possível à parte da burguesia que se integra no povo realizar a revolução com o apoio de todo o povo e, conquistado o poder, alijar o restante do povo da participação nele. Em termos políticos: trata-se de uma revolução democrático-burguesa, mas de tipo novo, em que a componente burguesa não terá condições para monopolizar os proventos da revolução. As possibilidades de operar o desenvolvimento material e cultural do Brasil para proveito apenas da burguesia estão encerradas.
POVO E PODER
Não era sem razão que a Constituição de 1824 consignava que aos parlamentares cabia o tratamento de "altos e poderosos senhores". Eles eram, realmente, altos, poderosos e senhores, — senhores de terras e de escravos ou de servos, altos pela distância vertical que os separava dos que não eram senhores, poderosos porque retinham todo o poder, reservavam-se todos os proveitos políticos da Independência e moldavam o Estado à imagem e semelhança de sua classe, faziam dele instrumento adequado à defesa de seus interesses.
Os direitos políticos eram hierárquicos: ficavam excluídos das eleições, preliminarmente, todos os que se compreendiam na faixa dos "cidadãos ativos", isto é, os que trabalhavam, os criados de servir, os que operavam o jornal, os caixeiros das casas comerciais, todos os que, em suma, auferiam rendimentos líquidos anuais inferiores ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca. E, claro, os escravos, que não eram considerados brasileiros, conforme determinava o artigo 5.°, em seu parágrafo primeiro. Mais tarde esse dispositivo foi emendado: os escravos passaram a ser considerados brasileiros; mas não eram considerados cidadãos. Os eleitores do primeiro grau deveriam ter rendimento líquido anual superior ao valor de 150 alqueires de farinha de mandioca; os de segundo grau, que escolhiam os deputados e senadores, deveriam tê-los superiores ao valor de 250 alqueires de farinha de mandioca; aos candidatos a deputados exigia-se rendimento superior ao valor de 500 alqueires de farinha de mandioca; aos candidatos a senadores, superior a 1.000 alqueires. Era a hierarquia da mandioca, padrão da moeda política no novo País. Além disso, aos candidatos a deputados e senadores exigia-se ainda a qualidade de proprietário foreiro ou rendeiro por longo prazo de bem de raiz no campo, de fábrica ou estabelecimento industrial. Ficavam excluídos, assim, os que auferissem renda de atividade mercantil. Eram ou não eram "altos e poderosos senhores"?
Com a Maioridade, que encerra, praticamente, o período de intensa agitação popular ligado ao processo da Independência, os "altos e poderosos senhores" ficam absolutos no poder. Em 1841, encerram o País num círculo de estreita subordinação ao poder central e entregam à polícia amplas atribuições judiciárias. Criam ainda o Conselho de Estado, característico da classe senhorial. Em 1846, reformam a lei eleitoral, tornando-a mais dura do que a anterior e, nela, a pretexto da desvalorização da moeda, fixam os direitos eleitorais em base metálica, dobrando, conseqüentemente, os mínimos antes exigidos. Não se falava em analfabetos, naquele tempo; não era necessária essa discriminação para afastar o povo dos direitos políticos; o povo era privado desses direitos pelas exigências da renda. A lei era clara: só os "altos e poderosos senhores" podiam ser eleitos.
Mas, em 1850, o Brasil tinha pouco mais de oito milhões de habitantes, dos quais mais de dois e meio milhões eram escravos. Isto é: em cada três brasileiros, um era escravo. Decreto de 5 de julho de 1876 declarou que o País tinha 1.486 paróquias eleitorais e 24.637 eleitores, para uma população de dez milhões de habitantes. O eleitorado, assim, reduzia-se a 0,25% da população. Esta exiguidade mostra a tremenda pobreza da classe média brasileira, na época: ela não participava do elementar direito eleitoral, próprio e privativo da classe senhorial. No Município Neutro, segundo dados citados por Joaquim Nabuco, o colégio eleitoral inferior a 6.000 eleitores compunha-se de 2.121 funcionários civis e militares, 1.076 negociantes, 616 proprietários, 398 médicos, 211 advogados, 207 engenheiros, 179 professores, 145 farmacêuticos, 236 artistas, 58 guarda-livros, 76 clérigos, 56 despachantes, 27 solicitadores, etc.
"As eleições primárias — conta um historiador — sempre foram a turbulência e a pancadaria dentro e fora das igrejas, à pergunta sacramental se alguém tinha que denunciar suborno ou conluio para que a eleição recaísse em determinadas pessoas. Nesses conflitos, venciam os grupos mais poderosos ou mais vantajosamente armados. As eleições secundárias eram a fraude, a assinatura dos eleitores em folhas de papel em branco remetidas aos presidentes das províncias". João Francisco Lisboa, severo observador dos costumes, depõe assim: "A violência parece ser uma das condições indeclináveis do nosso sistema eleitoral. Durante a crise, e sobretudo no dia da eleição, o espanto e o terror reinam nas cidades, vilas e povoações; os soldados e carcereiros percorrem armados as ruas e praças; há gritos, clamores, tumultos de todo gênero; dir-se-iam os preparativos de uma batalha, não os de um ato pacífico, e a cena do feito termina às vezes com espancamentos, tiros e descargas". O ensaísta maranhense define adiante as eleições, na época, como "sistema combinado da trapaça, falsidade, traição, imoralidade, corrupção e violência".
As alterações ocorridas na sociedade brasileira, na segunda metade do século XIX, que desembocariam na mudança de regime, consequentes às alterações ocorridas na estrutura econômica do País, pressionariam no sentido da inevitável ampliação dos direitos políticos. A agitação começou em 1855, com a Lei dos Círculos. Contra ela manifestou-se o Senado num pronunciamento característico: "Os deputados e senadores não sairão mais dentre as pessoas notáveis e bastante conhecidas para se fazerem aceitas por uma província inteira; os empregados subalternos, as notabilidades de aldeia, os protegidos de alguma influência local serão os escolhidos". Era a reação dos senhores rurais contra "a chusma". Cresceu a agitação com a reforma eleitoral pela eleição direta, tese dos liberais, desde 1862, que o Gabinete Sinimbu tentaria transformar em lei, o que só ocorreria com o Gabinete Saraiva, em 1881. Os debates foram longos e agitados: o projeto proposto por Sinimbu, vitorioso na Câmara por 81 contra 16 votos, foi acintosamente rejeitado pelo Senado. Mas, mesmo na Câmara, o dispositivo que concedia aos não católicos o direito de voto foi recusado, motivando a invectiva de Silveira Martins: "Câmara de servis"!
Mas já naquele tempo se levantava, com José Bonifácio, o Moço, o direito de voto para os analfabetos. A reforma mantinha as exigências fundadas na renda, e a nova concessão se tornaria inócua. E Joaquim Nabuco queria que "o direito de voto fosse extensivo a quantos a lei impõe o dever de morrer pela pátria, de modo que o sistema eleitoral não continuasse a ser uma comédia cheia de incidentes trágicos, ou uma tragédia cheia de incidentes cômicos". A queda do Gabinete Sinimbu transfere o problema ao Gabinete Saraiva. Este chefe liberal ascende ao lugar que deveria caber a Nabuco de Araújo e que não lhe foi dado porque era partidário do sufrágio universal. Nabuco dissera, antes: "A eleição será de poucos, tão concentrada como está a propriedade... O remédio para isso estaria, Senhores, no imposto territorial que dividisse a grande propriedade inútil ou não cultivada e concorresse para regularizar as posses dos colonos ou rendeiros, e os direitos respectivos". Palavras que, em 1871, correspondem às alterações sociais a que a reação conservadora ficaria surda. Palavras que custaram a quem as disse o alijamento da chefia do Gabinete que tornaria vitoriosa a eleição direta, num projeto rascunhado por Rui Barbosa, que sugeriria também um imposto sobre os aluguéis de casas, habitualmente majorados, em recibos falsos, destinados a provar que o inquilino pagava mais de cem mil réis anuais pela residência alugada, sendo esta uma exigência eleitoral cujo sentido discriminatório é evidente.
A eleição direta afetava apenas o formal, porém. Não tocava a essência do problema da representação. Ainda assim, a tramitação do projeto foi lenta, agoniada, tempestuosa. O mal não estava na lei, argumentava-se, mas "na massa ignorante da nação". Escrevendo ao seu querido Gobineau, o Imperador afirmava, referindo-se ao problema: "Em todo caso, eu não tenho confiança senão na educação do povo". Pedro II achava que o sufrágio universal era uma calamidade e que novas leis eleitorais "só poderiam ser perfeitamente bem sucedidas quando a educação política for outra que não a do nosso povo". Era antiga, e peculiar a uma sociedade dominada por "altos e poderosos senhores", a tendência em atribuir todos os males à "ignorância" do povo, e a admitir que só a "educação" deste permitiria o avanço político. E estava claro que os "altos e poderosos senhores" não estavam interessados nem na educação do povo nem em seu avanço político.


Quem é o povo no Brasil? (4)
Continuação da edição anterior
As agitações da primeira República, rebeliões militares, as campanhas de Rui Barbosa, tenentismo, assinalavam o fim de um sistema
NELSON WERNECK SODRÉ
A aplicação da lei provou a sua inocuidade: "quando o Senador Dantas, Presidente do Conselho, assegurou à Câmara, em 1884, que a oposição teria do Governo, nas eleições daquele ano, as maiores garantias de liberdade, correu pelos bancos dos conservadores uma gargalhada geral: era porque os profissionais da fraude já estavam senhores das fraquezas da lei, portanto do segredo de burlá-la, e sabiam o que podiam valer aquelas promessas de garantia", depõe um historiador. Em 1886, em plena campanha abolicionista, os conservadores no poder asseguraram a eleição de uma Câmara de prática unanimidade conservadora; e o Gabinete liberal de Ouro Preto, o último do regime, asseguraria, no poder, uma Câmara de prática unanimidade liberal. Nabuco de Araújo dizia que não havia, no Brasil, possibilidade de se formarem verdadeiros partidos políticos, "porque a sociedade brasileira era em geral homogênea e não havia nela, portanto, nada que a pudesse dividir profundamente". É verdadeira realmente que a área política, — não a nação, — era homogênea, porque monopolizada pela classe dominante; o povo estava excluído dela. Se aquela área pertencia a uma só classe, não havia, de fato, divisão profunda entre as facções partidárias. A divisão existiria, e seria profunda, se da área política, e da representação particularmente, participassem as classes que constituíam o povo. E isso não acontecia.
Daí, consequentemente, a estreiteza do campo eleitoral, reduzido, já no final do regime, àquelas duas e meia dezenas de milhares de eleitores a que se referira Nabuco, a 0,25% da população do País. E as escolhas, que hoje nos parecem curiosas, mas que eram naturais, de um senador, como Afonso Lamounier, em Minas Gerais, por 54 votos, em 1888, já nos fins do regime. Taunay reuniu os dados eleitorais relativos ao Senado do Império, em um de seus trabalhos, sempre copiosos de informação. Examinemos esses números que comprovam a estreiteza do campo eleitoral, o monopólio sobre ele exercido pela classe dominante, a exclusão total do povo da vida política.
Na primeira escolha de Senadores, em 1826, para só falar nos que foram nomeados, o Pará elegeu J. J. Nabuco de Araújo com 94 votos; o Rio Grande do Norte elegeu Afonso de Albuquerque Maranhão com 21 votos; Alagoas elegeu Felisberto Caldeira Brant Pontes com 67 votos; o Espírito Santo elegeu Francisco dos Santos Pinto com 31 votos; Santa Catarina elegeu Lourenço Rodrigues de Andrade com 32 votos; Mato Grosso elegeu Caetano Pinto de Miranda Montenegro com 10 votos; São Paulo elegeu José Feliciano Fernandes Pinheiro com 108 votos; o candidato que alcançou maior votação foi Francisco Carneiro de Campos, na Bahia, com 502 votos. Nos meados do século, o Amazonas, em 1852, levou ao Senado Herculano Ferreira Pena com 45 votos; o Espírito Santo, em 1850, a José Martins da Cruz Jobim com 64 votos; Mato Grosso, em 1854, a José Antônio de Miranda com 65 votos. Nos fins do regime, era ainda possível a escolha de um senador preferido por apenas 158 votos, como aconteceu, no Espírito Santo, em 1879, com Cristiano Benedito Otoni. O senador que alcançou maior votação em todo o período monárquico foi Evaristo Ferreira da Veiga, em 1887, em Minas Gerais, com 10.572 votos, sendo escolhido em detrimento de Manoel José Soares, que alcançara 10.900 votos. Logo após a adoção da eleição direta, e em um dos maiores colégios eleitorais do país, na Bahia, Rui Barbosa foi reconduzido à Câmara com pouco mais de 400 votos. Claro está que o povo não participava dos pleitos eleitorais e, portanto, na época, da atividade política, e, consequentemente, do poder.
A república burguesa é a forma política corrente que promove a ascensão capitalista seja, como nos Estados Unidos, sob roupagens clássicas, seja, como em países europeus, apenas disfarçada sob aspecto que revelam a conciliação com remanescentes feudais, chegando, na Inglaterra, a ostentar uma imponente e inócua fachada monárquica. Mas, no Brasil, a república não surgira de um processo por assim dizer clássico, o processo em que ela parece como o coroamento final das relações capitalistas amplamente implantadas. O capitalismo brasileiro dava apenas os primeiros passos, e carregava pesadíssimas heranças, a do passado escravista e a da resistência das relações feudais peculiares a uma área colonial. Devia, por tudo isso, apresentar uma fachada que a identificasse com as repúblicas existentes, — com o seu aparato institucional, — e um fundo em que se escondiam as profundas deficiências políticas ligadas ao atraso econômico. O capricho na fachada foi levado a extremo rigor, e adaptou-se, — não houve cópia, como se afirma geralmente, — a mais avançada lei básica, a dos Estados Unidos, para vestir o corpo desigual do País ainda recém egresso do escravismo. Concederam-se ao povo, formalmente, os direitos democráticos peculiares à revolução burguesa, mas não foram criadas as condições, — nem estava no poder dos indivíduos criá-las, — que permitissem tornar concretos aqueles direitos.
No que diz respeito à representação, e só este aspecto nos interessa aqui, revogou-se de plano o sistema eleitoral fundado na renda para se estabelecer o sufrágio universal. E só então surgiu, porque só então se tornou necessário, o problema do analfabeto. O voto era um direito concedido apenas aos homens maiores, com as exclusões conhecidas dos incapazes; mas apenas aos homens maiores que soubessem ler e escrever. Ficava, assim, excluída a mulher, — uma grande vítima da sociedade burguesa. Ficava excluído também o analfabeto. Se alfabetizar-se fosse um ato de vontade, apenas, isto é, se o regime tivesse condições para oferecer a todos o ensino de alfabetização, ainda assim a discriminação seria discutível. Como não era esse o caso — o Brasil estava longe de atingir uma etapa de desenvolvimento em que a alfabetização se constituísse em objetivo da classe dominante — a discriminação tinha um sentido antidemocrático evidente, e um claro conteúdo de classe. Foi aceita, entretanto, com naturalidade, por todos os motivos ligados ao meio e à época, e ainda porque a inteligência conservava, no Brasil, e ainda conserva, um timbre aristocrático, que classifica o homem culto, ou mesmo aquele rudimentarmente dotado de meios de entendimento e de expressão.
Encerrado o período de turbulência, em que a classe dominante, a dos latifundiários, associada à burguesia nascente que encabeçara a mudança do regime, retomou o poder e dele excluiu sumariamente os representantes da pequena burguesia, os militares que haviam participado dos acontecimentos, articulou-se um aparelho político simples, simétrico e eficiente, a que o governo Campos Sales deu pleno acabamento com a "política dos governadores": os Estados federados eram entregues às oligarquias locais, ou à conjugação delas, que os geriam como feudos, e limitavam ao mínimo a representação. Os candidatos eram escolhidos pelo aparelho político, que os selecionava, e eram por ele consagrados em prélios eleitorais meticulosamente montados, com o concurso de funcionários bem treinados no ofício. As autoridades eleitorais eram as comuns, e todas da confiança das oligarquias, que monopolizavam o provimento das funções públicas, servindo-se delas para acaudilhar as componentes pequeno-burguesas.
O quadro aparece em todos os seus traços justamente nos episódios que contrastam com a rotina, nos casos de dissenção, de discrepância, de oposição: quando algum candidato não escolhido pelo aparelho oficial tenta o sucesso das urnas, quando isso ocorre no plano nacional, com a substituição do presidente, quando das derrubadas de oligarquias, etc. Contra os insubmissos lança-se a força total do aparelho, desde a polícia até o mecanismo das nomeações, desde o comando dos "coronéis" até o engenhoso sistema das atas falsas. E tudo culmina nos reconhecimentos, quando as comissões especiais, no Congresso, depuram tranquilamente os adversários, nas "degolas" conhecidas, afastando os que ousaram infringir essa curiosa ortodoxia da obediência. As eleições não merecem fé, as apurações não merecem fé, os reconhecimentos não merecem fé. E isto durou até 1930, quando as condições do País impuseram mudança. Foi então que um dos mais sagazes seguidores dos velhos processos disse a conhecida frase: "Façamos a revolução antes que o povo a faça". Traduzida em linguagem corrente, poderia ser entendida assim: "Façamos, nós da classe dominante, as modificações necessárias para que permaneçamos como classe dominante".
A revolução de 1930, que correspondeu a novo impulso da burguesia brasileira para ampliar a sua participação no poder, com o apoio da pequena burguesia, criou um sistema eleitoral diferente, tornando o voto secreto, extensivo às mulheres e apurado por um aparelho especial, uma justiça específica. Manteve, entretanto, a exclusão dos analfabetos, isto é, dos elementos que não tinham, por condições de classe, acesso à cultura. A classe dominante não lhes permitia esse acesso, e punia-os por isso. Mas aí as condições eram muito diferentes: havia um operariado numeroso, dotado do mínimo de organização, e uma pequena burguesia cada vez mais interessada pelo problema político. As agitações da primeira República, rebeliões militares, campanhas de Rui Barbosa, tenentismo, assinalavam o fim de um sistema. O surto industrial, durante a primeira Grande Guerra, fizera crescer rapidamente o proletariado; antes de terminado o conflito, apareceram as primeiras grandes greves; o Partido Comunista foi organizado, em 1922, e a principal estrela do tenentismo aderira às "doutrinas exóticas" às vésperas da revolução de 1930. O engenhoso sistema eleitoral, em que os mortos votavam, as "degolas" se sucediam e as quarteladas alvoroçavam o País, estava condenado. Era mesmo necessário antecipar-se à revolução popular.
Mas, logo após a revolução que alterara o sistema eleitoral da forma antes referida, quando a vida política recebia saudável sopro renovador, apareciam personagens novos, partidos novos, correntes novas de opinião, as oligarquias tratavam de alijar os elementos ligados ao tenentismo, vindos no bojo do movimento militar, representantes típicos da pequena burguesia. Como os militares que fizeram a República, eles eram bons como instrumento, como executantes, como agentes da tomada do poder; para governar, para participar do poder, apresentavam inúmeros inconvenientes: tinham honestas idéias reformistas, algumas vezes, e até mesmo, em uns poucos casos, procuravam pô-las em prática; não respeitavam antiquíssimos direitos adquiridos, tradições mantidas pelo conformismo, desejavam representação democrática e mesmo justiça. Era demais, evidentemente. Começou a reação que, iniciada com a rebelião de 1932, deveria encrespar-se na vigorosa campanha de repressão que levou à revolução de 1935 e, pelos tortuosos caminhos do estado de sítio e doestado de guerra, chegou, finalmente, à ditadura do Estado Novo. Durante dez anos, o Brasil não conheceu eleições.
A segunda Guerra Mundial permitiu ao País novo impulso à sua industrialização, entrando agora no campo dos bens de produção. A derrota do nazi-fascismo impunha o retorno das instituições democráticas. Foi adotada, então, a legislação eleitoral anterior, com pequenas modificações, mantida a discriminação do analfabeto. A vida política voltou a agitar-se e novo período intercalar e breve de liberdade de opinião ocorreu. O grande fantasma, agora, era o proletariado: cumpria reduzí-lo. Foram tomadas as medidas necessárias: cassou-se o mandato de mais de vinte parlamentares comunistas, fora os estaduais, colocou-se o Partido Comunista na ilegalidade, controlou-se a atividade sindical nos moldes da ditadura estadonovista. Os governantes da primeira República diziam que a questão social, no Brasil, era um caso de polícia; os da segunda tornaram-na, realmente, um caso de polícia. Supunham-na passível de solução através das ações do subdelegado. O aparelho de prevenção e de repressão a qualquer idéia que não coincidisse com os interesses da classe dominante cresceu e se especializou, passando, inclusive, a ser controlado pelo imperialismo. Até se transformar, nos dias que correm, nessa organizada e rendosa "indústria do anticomunismo", a que estamos assistindo.
O eleitorado brasileiro compreendia, em 1945, quando o Brasil retomou a fachada democrática, 7.460.000 eleitores. Em 1954, atingiu a 15.105.000. Para as eleições de 1958, foi exigida rigorosa depuração. Preocupava a determinadas forças políticas dominantes a crescente participação popular nas eleições. O objetivo foi excluir os que "mal sabiam assinar o nome" e tinham a ousadia de pretender competir com os doutores, de participar da escolha política. Em todos os países, normalmente, o eleitorado cresce com o tempo, quando menos pela simples força do aumento vegetativo da população adulta. No Brasil, assistiu-se a esse fato singular: a redução do eleitorado que, dos 15.105.000 de 1954 passou aos 13.780.000 de 1958. Mais de um milhão de brasileiros perdeu o direito de votar. Desses quase catorze milhões, compareceram ao pleito daquele ano apenas 11.340.000; em cada cinco brasileiros, um deixou de usar o direito de voto. Não se apurou, certamente, mas é fácil deduzir que, entre os quase dois milhões de faltosos, haveria esmagadora maioria de elementos do povo.
Comparando o eleitorado de 1958 com a população do País, à base do censo de 1950, chega-se à triste conclusão de que constituía parte minoritária da população ativa. Havia, no Brasil, realmente, cerca de 31.000.000 de maiores de 18 anos. Um eleitorado de 13.780.000 constituía, portanto, 44% daquela população adulta. A maioria dela, apta pela idade ao exercício do voto, ficava privada de votar: quase 17.000.000 de brasileiros sofriam dessa privação, em 1958. Se considerarmos as estimativas da população para 1962, verificaremos que o total de brasileiros gira em torno de 75.000.000, e o total de maiores de 18 anos em torno de 45.000.000. O eleitorado, entretanto, permanece sendo da ordem de 15.000.000. Isto quer dizer que, se, em 1958, em cada dois brasileiros maiores, um era privado de votar, em 1962, em cada três brasileiros maiores, dois são privados de votar. É, assim, uma democracia que encolhe, enquanto o País se amplia. Mas esse encolhimento é o objetivo ideal das classes dominantes, que almejam uma consulta eleitoral ainda mais restrita, censo alto, eleição indireta, governos de elites, e outras fórmulas que apenas revelam horror ao povo, receio de suas sentenças, pavor de seus pronunciamentos.

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