1 de outubro de 2009

Fordlândia: desindustrialização e crítica do presente

 

No documentário Fordlândia, os cineastas se fazem cronistas de uma cidade extinta. Uma cidade construída por Henry Ford, nos anos 1930, em plena floresta amazônica. Se as ruínas são testemunhas que resistem ao poder destruidor do tempo, Fordlândia corresponde, antes, à lógica do Capital.

Olgária Mattos

Fordlândia é um documentário de Mário Andrade e Daniel Augusto. Henry Ford funda, nos anos 1930, em plena floresta amazônica, um duplo de Detroit, cidade construída para introduzir no desenvolvimento industrial a utopia do automóvel. Na luta entre natureza e cultura, para realizar as promessas iluministas do progresso técnico, a cadeia de montagem venceria, pela racionalização do trabalho, a beleza convulsiva da mata exuberante.
Indiferentes a esse mito, os cineastas se fazem cronistas de uma cidade extinta. Em vez de dar a voz principal a antropólogos e economistas, historiadores e urbanistas - que explicariam o fracasso da tarefa no desconhecimento “da geografia humana” da região, dos seringais dizimados às condições alimentares impostas pelo colonizador moderno -, e desconfiando do dualismo do explorador e do explorado, a fita produz um deslocamento da memória testemunhal e dos filmes de arquivo, evocando a potência alucinatória da ficção, profetizando o passado, invertendo as relações causais. Evitando a idéia de que a objetividade é a verdade, os diretores operam com a desordem espacial e das lembranças para ingressar na cidade fantasmática de que não restam sequer ruínas, mas reminiscências de antigas edificações - da fábrica, da escola, do hospital,das moradas operárias e da “casa grande”.
Se as ruínas são testemunhas que resistem ao poder destruidor do tempo, Fordlândia corresponde, antes, à lógica do Capital. Ao tratar do capitalismo triunfante na Paris do século XIX, Benjamin anotou que nos “monumentos da burguesias se reconhecem ruínas antes de seu desmoronamento.”
Nesta fita as ruínas não são apenas materiais e externas, mas subjetivas e existenciais. Nem desaparecida, nem sobrevivente, a cidade, com seus raros habitantes, descendentes dos pioneiros, oferece o espetáculo de uma anacrônica duração.
Anacrônica, caso os diretores acreditassem em progresso e decadência, apogeu e queda de civilizações. Não por acaso, o filme começa pela cena final nos seringais: o trabalho que neles inscreve as primeiras cicatrizes produz o sofrimento da natureza que prenuncia o do homem.
Colocando face a face a criança de outrora, hoje adulto que, dos Estados Unidos, retorna à casa paterna e reencontra a ama que a criou, a câmera confidencial atualiza o que é negligenciado e esquecido nos relatos acadêmicos. Daniel Augusto e Mario Andrade não competem com ficções reais, câmera e ficção têm o dom de reanimar o que parecia sem vida e reunir os caminhos que se separaram e se perderam. Longe do diretor onisciente, a câmera preserva o decoro e o pudor. Em lugar de diálogos,a imagem revela a memória involuntária que traz de volta as primeiras emoções, o adulto é a criança que a ama acalentou. Fordlândia é o emblema da existência condicionada pela economia e pelo capital; nela, a vida perde a destinação humana.
Em seu ensaio “Experiência e Pobreza”, Walter Benjamin procura compreender como a pobreza pode se transformar em recurso e conhecimento, esquivando-se da submissão à produção imposta pela heteronomia da acumulação e do mercado mundial. Por isso fábulas e provérbios são ensinamentos de que Diógenes, no século V a.C dá o exemplo. Conta-se que um caminhante viu o filósofo que passava suas noites e seus dias ao relento mendigando uma moeda a uma estátua e lhe perguntou porque agia assim. Ao que Diógenes respondeu: “Eu me preparo para não receber nada.” Diógenes transforma a pobreza em menosprezo da glória das estátuas e, simultaneamente, revela a pobreza como condição de sua liberdade.
No filme a pobreza não é apenas a falta e seus tristes corolários, mas uma máxima sobre o trabalho industrial e o cortejo de infelicidades que comporta. Oscilando entre um passado que não se encerrou e um futuro que não é ainda, o limiar do desaparecimento pode vir a ser o renascimento da cidade que seja a “morada do homem”, espaço de pertencimento, bem-estar e paz. Nesta fita a tristeza não deverá ter a última palavra.

Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.

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