Caía uma chuva negra. A população pensava ser óleo jogado pelos americanos, mas era uma chuva ácida, resultante da explosão com força de 21 toneladas de dinamite
Por: Moacir Assunção
Publicado em 14/10/2010
Yoshitaka estava em um navio em Nagasaki quando a bomba explodiu. “O dia virou noite” (Foto: Danilo Ramos)
Haruko Yoshiga, de 88 anos, Yasuko Nishimura, de 79, e Yoshitaka Samedima, de 82, têm em comum a lembrança viva do maior horror jamais criado pelo homem: a bomba atômica. Lançada há 65 anos por aviões americanos, ela arrasou as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Os descendentes de japoneses viram nascer a maior arma de destruição em massa, cuja criação marcou um novo paradigma na história do homem, ao estabelecer que a própria raça poderia ser extinta.
Yasuko, a única natural de Hiroshima, chegou ao Brasil em 1952. Haruko e Yoshitaka, de pais japoneses, são brasileiros nascidos no estado de São Paulo, que voltaram à terra de seus ancestrais no final da década de 1930 para aprender o idioma e retomar o contato com sua cultura.
Com a guerra, não puderam voltar e se tornaram protagonistas de uma história curiosa e pouco conhecida de brasileiros, a dos hibakushas – pessoas afetadas pela bomba, das quais 130 vivem no Brasil.
Yoshitaka nasceu em Bauru e vive em um sítio em Suzano. Chegou a servir ao orgulhoso exército imperial japonês. Estava dentro de um navio militar em Nagasaki quando, em 9 de agosto de 1945, a bomba explodiu na cidade portuária de 240 mil habitantes – 80 mil morreram imediatamente. Em Hiroshima, estima-se em pelo menos 100 mil os mortos logo após a explosão. Os efeitos da radiação matariam ainda outros milhares de pessoas nos anos seguintes.
“Lembro que o navio balançou. Saímos e estava tudo escuro. A cidade inteira estava destruída”, conta. Na sequência, os soldados saíram para socorrer as vítimas da explosão da fat man (homem gordo), nome dado à segunda bomba – a little boy (menininho) havia sido jogada antes do avião Enola Gay sobre Hiroshima. Yoshitaka ficou com manchas brancas nos braços. “Após a explosão, às 11 horas, o dia virou noite. O cheiro de morte nas ruas era difícil de aguentar. Demoramos para entrar em Nagasaki. Quando chegamos, havia sobreviventes em abrigos. O resto, até as árvores, estava tudo queimado.” O brasileiro, cujos pais chegaram ao país em 1909, voltou para São Paulo em 1960.
Haruko trabalhava na zona rural de Hiroshima, a 16 quilômetros do epicentro da explosão. Mesmo assim, as consequências foram catastróficas. “A casa desabou em cima de todo mundo, espalhando cacos de vidro para todo lado. Eu vivia com mais quatro irmãos na cidade de onde meus pais saíram para vir ao Brasil”, conta. Um irmão morreu pouco após a bomba, vítima de uma febre que não passava.
Pouco tempo depois, numerosos grupos de vítimas que conseguiram sair da cidade foram para a zona rural em busca de ajuda para escapar do horror. Não era possível, entretanto, encontrar muita coisa. “Era muita gente, que alojamos numa escola, um dos poucos lugares que ficou em pé, já que tudo estava queimado e destruído. Faltava de tudo.”
Pela segunda vez, a família de Haruko tomava parte de um fato histórico. Seu pai, Fusakishi Nishimura, havia sido um dos 781 pioneiros da imigração japonesa ao Brasil, onde chegaram em 1909 a bordo do navio Kasato Maru. Somente um de seus oito filhos havia nascido em Hiroshima, todos demais eram brasileiros, ocidentalizados demais para o gosto do tradicionalista Fusakishi. Enquanto seus conterrâneos rumaram para o interior, Fusakishi ficou na capital. Vendia brinquedos de madeira feitos à mão. Alguns anos depois, conseguiu montar uma pequena fábrica no bairro da Mooca. Em de 1939, mandou os filhos de volta ao Japão. Um deles, Kenzo Nishimura, casou-se com Yasuko na cidade natal do pai. Depois da guerra, decidiram voltar. “Não tem lugar como o Brasil”, diz ela.
Saúde de ferro
A Associação dos Sobreviventes da Bomba Atômica no Brasil foi surpreendida com a existência de brasileiros natos entre as vítimas. Imaginava-se que os hibakushas eram somente japoneses e coreanos. “Como todo mundo tem traços e nomes orientais, pensávamos que não havia brasileiros.
Eles são muito reservados e muitas vezes nem a família sabia o que tinha acontecido”, conta a diretora da entidade Yasuko Saito. Somente depois de um encontro há pouco mais de um ano os sobreviventes foram estimulados a falar mais de sua origem. “A história é absolutamente surpreendente porque sempre se achou que os sobreviventes eram somente japoneses e, talvez, alguns coreanos”, afirma o professor de História André Lopes Loula, diretor cultural da entidade.
Em 2003, Yoshitaka Samedima conheceu Takashi Morita, de 86 anos, presidente da associação e também sobrevivente de Hiroshima, que perguntou sobre as manchas nos braços. Até então, nem a família sabia o que ele tinha vivido naquele agosto de 1945. A razão do segredo era o preconceito. “Nenhuma moça queria se casar com hibakushas. Achavam que os filhos nasceriam com deficiências”, explica. Por causa disso, muitas histórias ficaram escondidas.
A Associação das Vítimas da Bomba Atômica no Brasil foi fundada em 1984, com o objetivo de congregar os sobreviventes e conseguir alguma ajuda do governo japonês para os hibakushas que viviam em outros países. Na rígida cultura nipônica, os que saíram do país passaram a ser vistos como ingratos com sua pátria. Morita, que começou a organizar o movimento, foi forçado a entrar com ações judiciais contra o Japão para ver reconhecidos os direitos dos conterrâneos. Hoje os 130 sobreviventes no Brasil recebem uma ajuda de aproximadamente R$ 500 por mês e assistência médica – antes o governo japonês só atendia as pessoas do país.
Duas vezes por ano, médicos japoneses especialistas em sequelas de bombas atômicas vêm ao Brasil para consultar os hibakushas. A maior parte, entretanto, tem saúde de ferro, apesar da idade. E ao contrário da crença popular, os filhos também nasceram saudáveis.
Uma luz silenciosa
Apesar de estar no Brasil desde a década de 1950, Morita ainda fala português com dificuldade, e atribui sua longevidade ao clima tropical. Policial militar em Hiroshima, estava a pouco mais de um quilômetro do epicentro da explosão. Enquanto muitos fugiam, ele voltou à cidade para tentar socorrer vítimas. “Nunca esqueci nem vou esquecer o que vi. Milhares de corpos queimados dentro dos bondes, crianças mortas sob os escombros, o fogo avançando sobre pessoas que pediam ajuda para não morrer dentro das casas destruídas. Era um cenário de horror, parecia o fim do mundo”, descreve Morita, ainda emocionado. Na hora da explosão, ele não ouviu barulho algum, foi projetado dez metros à frente e sofreu queimaduras nas costas e nuca. O então policial atribui sua sobrevivência ao fato de estar com roupas grossas, bem alimentado e de costas para o epicentro.
Só viu uma luz silenciosa, uma espécie de flash, que percorreu rapidamente todo o seu corpo. Ao conseguir se levantar, estava tudo escuro, embora fossem 8h15. Caía uma chuva negra, que a população pensava ser óleo jogado pelos americanos para provocar incêndios, como tinha acontecido em Tóquio. Não era, tratava-se de uma chuva ácida, resultante da explosão e da radiação provocada pelo artefato nuclear com potência de 21 toneladas de dinamite. Até aquele momento, ninguém imaginava que a bomba lançada era muitas vezes mais letal que as temidas ogivas incendiárias que devastaram a capital japonesa.
Uma cena que Morita jamais esqueceu foi a de uma jovem mãe, morrendo ao lado do seu filho, que pediu ao vê-lo fardado: “Soldado, mate americanos”. No Brasil, onde chegou em 1956 ao lado da mulher, a enfermeira Ayako e os filhos Yasuko (a diretora da associação) e Tetsuji, foi relojoeiro na Rua Augusta e, depois abriu uma mercearia de produtos japoneses no bairro da Saúde, onde também funciona a sede da associação e da entidade-irmã Associação Hikabusha-Brasil pela Paz.
“Meu Deus, o que fizemos?”
A frase de espanto com as consequências do ataque a Hiroshima teria sido pronunciada pelo co-piloto Robert Lewis. Ele estava a bordo do B-29, batizado como Enola Gay, comandado pelo coronel Paul Tibbets, de onde partiu a bomba que formou o enorme “cogumelo”, fotografado pelo sargento Bob Caron. A decisão havia sido tomada no dia 25 de julho pelo presidente dos Estados Unidos, Harry Truman. Em um gabinete improvisado no cruzador USS Augusta, no meio do Atlântico, foi Truman quem ordenou o ataque nuclear contra o inimigo que havia impingido um enorme número de baixas de americanos no ataque a Okinawa. Antes, entretanto, o Japão já analisava a sua rendição, pela primeira vez na história militar do país.
O presidente americano tinha em mãos uma lista de cidades-alvo feita pelo secretário de Guerra, Henry Stimson: Hiroshima, Kyoto, Nokura, Niigata e Nagasaki. Hiroshima passou a ser um alvo prioritário por ter 40 mil soldados em sua área. No navio, Truman escreveu em seu diário: “A arma finalmente será usada contra o Japão. Parece a coisa mais terrível jamais descoberta”.
A decisão foi mais do que uma vingança contra a operação japonesa na base norte-americana de Pearl Harbor, localizada na ilha de Ohau (Havaí), na qual foram mortos 2.400 americanos. O ataque causou terríveis repercussões na opinião pública do país. Os Estados Unidos alegavam que sofreriam muitas baixas – até 200 mil – em um eventual ataque convencional ao Japão. Mas o que moveu mesmo o governo de Truman a empregar a bomba foi, segundo a maior parte dos especialistas, a intenção de dar um recado a União Soviética. Afinal, o Exército Vermelho havia destruído a máquina de guerra de Adolf Hitler – era preciso demonstrar ter em mãos uma arma mais poderosa.
Hiroshima e Nagasaki teriam sido escolhidas por se situar entre vales, o que permitiria observar os efeitos da bomba em alvos reais, sem condições de a radiação se dissipar totalmente antes de cessarem seus efeitos. Seriam as primeiras (e até hoje únicas) vezes em que a poderosa arma foi usada contra alvos humanos.
Era o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da era nuclear e da Guerra Fria, conflito não declarado entre as grandes potências, EUA e URSS, que se estenderia por todo o século 20. O embate com as extintas potências comunistas já não existe mais. Mas os interesses econômicos do bloco de nações ricas – inclusive os da indústria armamentista – ainda são um legado das potências capitalistas a ser desarmado pela humanidade no século 21.
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