21 de setembro de 2010

No mundo da Blackwater

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Continuação da edição anterior

À medida que crescia a confiança da CIA na Blackwater, aumentavam as responsabilidades da empresa, que passaram da proteção estática à segurança móvel – cobertura ao pessoal da Agência, sempre com medo de suicidas-bombas, emboscadas e bombas de fabricação caseira ao longo e às margens das estradas, em suas andanças pelo país. Mas, em 2005, a Blackwater, acostumada a guardar os agentes da CIA, começava a ficar um bocado parecida com a própria CIA

ADAM CIRALSKY

A paisagem afegã, vista a uma velocidade de 200 nós, é uma neblina cáqui. O terreno é ainda mais difícil de descrever porque Erik Prince voa sobre ele a menos de 200 pés. A traseira do avião – um pequeno CASA C-212 de fabricação espanhola – está aberta. A tripulação inicia uma contagem regressiva, Prince ajusta o cinto que o amarra ao avião e fica em posição. Ao ouvir o comando “agora!”, um jovem soldado do exército [G.I.] corta uma tira e Prince empurra um contêiner para fora do avião. Vê-se o paraquedas preto que se abre e o avião salta para a frente, empurrado pela diminuição do peso que carrega. A carga – alimentos e munição – cai dentro do perímetro demarcado de uma base operacional avançada [FOB - forward operating base] de um esquadrão de elite das Forças Especiais dos EUA.
  Cinco vezes por semana, o braço de aviação da Blackwater – uma empresa que leva o espantoso nome de Presidential Airways – voa nessas perigosas e baixas altitudes até os mais remotos postos norte-americanos no Afeganistão. Desde 2006, a empresa de Prince está encarregada de prestar esse “serviço chave” aos soldados norte-americanos, que implica milhares de viagens de entrega. A Blackwater também fornece serviços de segurança ao embaixador dos EUA, Karl Eikenberry, e sua equipe; e dá treinamento a unidades especiais da polícia do Afeganistão.
  De volta a terra firme, Prince, com um BlackBerry na cintura e uma 9 mm do outro lado, faz uma rápida visita de inspeção a uma das bases da Blackwater no nordeste do Afeganistão, mostrando alguns prédios recentemente atingidos por fogo de morteiros. Um avião sob controle remoto [drone] faz círculos no céu, as câmeras vasculhando os arredores. Prince escala uma torre de observação e examina um ponto, abaixo, onde dois de seus empregados quase foram mortos em julho, por uma bomba de fabricação caseira. “Sem contar os postos de controle de passagem de civis, essa é a base mais próxima da fronteira [do Paquistão]”, Sua voz adquire uma melodramática solenidade.  “Quem mais construiu um FOB ao longo da principal rota de infiltração do Talibã e tão perto da última localização conhecida de Osama bin Laden?”. Não chega a ter o apelo do “Para Aqaba!”, bradado por Lawrence da Arábia, mas dá para você ter uma imagem.

ASSASSINATOS

A Blackwater está no Afeganistão desde 2002. Naquele momento, o diretor executivo da CIA, A. B. “Buzzy” Krongard, respondendo às queixas de seus agentes, que estavam “muito preocupados porque os afegãos estão saltando por cima da cerca ou abrindo as portas”, alistou a empresa para dar proteção à base da Agência em Cabul. (Krongard, depois, serviria como conselheiro da direção da Blackwater até 2007. E seu irmão Howard “Cookie” Krongard – inspetor geral do Departamento de Estado – teve que se esforçar muito para comprovar sua absoluta separação relativamente aos negócios com a Blackwater no Afeganistão, depois que se revelou o envolvimento do irmão com aquela empresa. Buzzy, depois, se demitiu).
  À medida que crescia a confiança da CIA na Blackwater, aumentavam as responsabilidades da empresa, que passaram da proteção estática à segurança móvel – cobertura ao pessoal da Agência, sempre com medo de suicidas-bombas, emboscadas e bombas de fabricação caseira ao longo e às margens das estradas, em suas andanças pelo país. Mas, em 2005, a Blackwater, acostumada a guardar os agentes da CIA, começava a ficar um bocado parecida com a própria CIA.
  Enrique “Ric” Prado tornou-se empregado da Blackwater depois de trabalhar como chefe de operações do Centro de Contraterrorismo (CTC) da CIA. Pouco depois, o chefe de Prado, J. Cofer Black, diretor geral do CTC, também se mudou para a Blackwater. Foi seguido, depois, pelo superior dos dois, Rob Richer, segundo em comando de todas as operações clandestinas da CIA. Dos três, Cofer Black sempre foi o mais notório. Como Bob Woodward contou em seu livro “Bush at War”, no dia 13 de setembro de 2001, Black prometeu ao presidente Bush que a CIA deixaria os membros da Al-Qaeda “com moscas passeando nos buracos dos olhos”. Segundo Woodward, “Black ficou conhecido, no círculo íntimo de Bush, como ‘o cara das moscas nos buracos dos olhos’ [flies-on-the-eyeballs guy]”. Richer e Black rapidamente ajudaram a criar uma nova empresa, a Total Intelligence Solutions (que coleta dados para ajudar na avaliação de risco de negócios no exterior). Mas, em 2008, ambos deixaram a Blackwater, assim como, em 2010, o presidente da empresa, Gary Jackson, fez o mesmo.
  Durante todo esse tempo, Black e Richer, parceiros de Ric Prado, primeiro na CIA, depois como empregados da Blackwater, trabalharam em silêncio com Prince como seus vice-presidentes de “programas especiais”, para fornecer à CIA um serviço que todos os serviços de inteligência querem muito: a negativa plausível. Pouco depois do 11/9, o presidente Bush lançou uma ordem de “achar e matar” que deu carta branca à CIA para matar ou capturar membros da Al-Qaeda. (Por efeito de ordem presidencial do presidente Gerald Ford, desde 1976 os agentes da inteligência dos EUA eram proibidos, por lei, de organizar e executar assassinatos). Como experiente funcionário, Prado ajudou a implementar a ordem de Bush, selecionando uma equipe de “blue-badgers” [“faixas azuis”], como são conhecidos os agentes do governo. O serviço tinha três etapas: “achar”, “fixar” e “acabar”. “Achar” o alvo designado, “fixar” a rotina da pessoa e, se necessário, “acabar” com ela. Quando chegou a hora de treinar essa equipe, a CIA, dizem fontes internas, procurou Prince. Preocupados em não atrair excessiva atenção, a equipe não foi adestrada no centro de treinamento da empresa na Carolina do Norte, mas em uma propriedade particular de Prince, a uma hora de Washington, DC. A propriedade é semelhante a outras mansões de grandes proprietários rurais, com pastagens e criação de cavalos, mas com outras instalações menos tradicionais, como um stand coberto de treinamento de tiro. Mais uma vez, Prince inspirava-se no agente “Bill, o Selvagem”: “Os primeiros agentes do Office of Strategic Services (OSS) da II Guerra Mundial também foram treinados numa propriedade rural privada, no interior do país”.
  Entre os alvos das equipes, segundo uma fonte familiarizada com o programa, estava Mamoun Darkazanli, um financiador da Al-Qaeda que vivia em Hamburgo e estava há anos no radar da Agência por suas ligações com três dos sequestradores do 11/9 e com elementos condenados pelos atentados a bomba, em 1998, contra embaixadas dos EUA na África Oriental. A equipe da CIA supostamente trabalhou “no escuro”, no sentido de que a presença da equipe não foi notificada nem à própria estação da Agência [na Alemanha] – muito menos ao governo alemão. Eles, então, seguiram Darkazanli durante semanas, e trabalharam para montar a logística de onde e quando seria abatido. Outro alvo, diz a mesma fonte, foi A. Q. Khan, o cientista paquistanês [acusado de] partilhar know-how nuclear com o Irã, a Líbia e a Coreia do Norte. Supõe-se que a equipe da CIA o tenha rastreado em Dubai. Em ambos os casos, insiste a mesma fonte, as autoridades em Washington escolheram não apertar o gatilho, suspender a caçada e não autorizaram o assassinato. No entanto, a inclusão de Khan na lista de alvos selecionados sugere que o programa de assassinatos era mais amplo do que se suspeitava anteriormente. (Para Gimigliano, porta-voz da Agência, “a CIA não discutiu – ao contrário do que a mídia divulgou – o conteúdo e substância desses projetos, ou de projetos anteriores”).
  A fonte familiarizada com as missões Darkazanli e Khan não aceita o que têm dito agentes atuais e ex-agentes da CIA: “Eles têm dito que o programa de assassinatos não avançou porque os agentes não tinham capacitação ou porque houve falha de cobertura. Não é verdade. A operação esteve ativa por muito tempo, em vários lugares, sem jamais ser descoberta. O programa morreu por falta de vontade política”.
  Quando Prado deixou a CIA, em 2004, depois de um curto hiato, de fato levou o programa com ele [para a Blackwater]. Àquela altura, segundo fontes que conhecem o plano, Prince já estava ligado à Agência e os dois começaram a trabalhar na privatização do programa, mudando a composição da equipe, de faixas azuis para uma combinação de “faixas verdes” (empresas contratadas pela CIA) e empresas de países do Terceiro Mundo (que não sabiam da conexão com a CIA). Funcionários da Blackwater insistem que os recursos da empresa e a força-de-trabalho nunca foram diretamente utilizadas; essas iniciativas seriam de responsabilidade pessoal direta de Prince, por fora da contabilidade da Blackwater; a empresa, depois, reembolsava os gastos que houvesse. E que, apesar dos laços íntimos que os ligavam à CIA, nem Cofer Black nem Rob Richer tomaram parte.  Nas palavras de Prince: “Estávamos construindo uma capacidade unilateral e intransferível. Se desse errado, não esperávamos que o chefe da estação [da CIA], o embaixador ou seja lá quem for nos desse fuga”. Prince insiste que, se essa equipe tivesse realmente funcionado, a CIA teria pleno controle operacional. Mas não funcionou, devido ao que Prince chama de “osteoporose institucional”, e a segunda versão do programa de assassinatos perdeu força.
  Em algum momento, depois de 2006, a CIA tentaria reativar o programa, segundo uma fonte interna que conhece o plano em detalhes. “Cada um achou alguma razão para não participar”, diz a fonte. “Tiraram o corpo fora. As pessoas diziam aos coordenadores ‘tenho família, tenho outros compromissos’. Esta é a fodida [fucking] CIA. Estavam, supostamente, chefiando a luta contra a al-Qaeda, mas não se conseguia achar quem quisesse fazer a tarefa”. Outras fontes com conhecimento do programa são mais caridosas e questionam por que um funcionário direitista assinaria embaixo de um programa de assassinatos, quando seus colegas que pensaram ter cobertura legal para se engajar em outro esforço sensível, o programa de “interrogatórios com uso da força”, nas bases secretas da CIA em países estrangeiros, foram pegos num limbo legal.
  Os EUA e Erik Prince, ao que parece, demoraram demais para sair do negócio de assassinatos. Além dos aviões por controle remoto que voam, com auxílio da Blackwater, por cima da fronteira afegã-paquistanesa (o presidente Obama autorizou mais de três dúzias desses ataques), Prince reivindica que ele e uma equipe de cidadãos estrangeiros ajudaram a achar e fixar um alvo em outubro de 2008 e depois deixaram a etapa de “acabar” para outros. “Na Síria”, ele diz, “emitimos todos os sinais de inteligência para a geolocalização dos bandidos numa área muito impenetrável”. Em seguida, uma equipe das Forças Especiais dos EUA lançou um ataque de helicóptero para abater Abu Ghadiyah, um dirigente intermediário da Al-Qaeda. Ghadiyah, cujo nome real é Badran Turki Hishan Al-Mazidih, foi dado como morto, com seis outras pessoas – embora tenham surgido dúvidas sobre se Ghadiyah estava lá no dia do ataque, como foi detalhado numa recente reportagem de Reese Ehrlich e Peter Coyote, em “Vanity Fair”.
  E, até dois meses atrás [novembro de 2009], quando Prince diz que o governo Obama tirou o fio da tomada, ele continuava profundamente envolvido nas artes das trevas. Segundo fontes internas, Prince continuava a trabalhar em operações para reunir informações de inteligência, de um local secreto, nos EUA, coordenando de longe o movimento de espiões que trabalham infiltrados num dos países do chamado “Eixo do Mal”. Sua missão: confidencial.

RETIRADA

  Voando, ao retornar de Cabul, Prince requenta o assunto de quanto se sente exposto desde que a mídia revelou seu papel no programa de assassinatos. A tempestade, que começou em agosto, continuou a crescer e pode estar levando muitos dos que o manipularam a não saber com certeza se o próprio Prince não seria hoje mais uma debilidade do que um recurso. Ele diz que não pode entender porque encerrariam esforços e programas de alto risco e altos dividendos contra alguns dos mais implacáveis inimigos dos EUA, por medo de que seu envolvimento poderia acarretar um comprometimento, em vista do clima político.
  Ele é incrédulo em que os funcionários do governo dos EUA pareçam desejar, com efeito, tirar o ar daqueles programas. “Tenho, aberta e encobertamente, servido aos EUA desde que me alistei pela primeira vez nas Forças Armadas”, Prince observa. Depois de 12 anos construindo sua empresa, diz que quer entregá-la aos empregados e a um comitê de administração, e deixar de prestar serviços à Defesa. Há quem diga que está em curso uma luta interna pelo poder, entre os que querem definir o rumo do que possa ser uma Blackwater pós-Prince.
  Prince insiste: simplesmente, “estou farto”.
  No passado, Prince divertiu-se com a ideia de construir um navio – completo, com pessoal de segurança, médicos, helicópteros, remédios, alimentos e combustível – e estacioná-lo no litoral da África, para oferecer “ajuda e dentes” nos pontos mais difíceis do continente ou enfrentar os piratas da Somália. Chegou a pensar em criar uma brigada de rápido deslocamento, a ser alugada, sob pagamento, a governos estrangeiros.
  Por hora, contudo, Prince diz que tem planos muito mais modestos. “Vou ser professor de ginásio”, diz, sem piscar. “Posso ensinar história e economia. E sou treinador de luta livre. Por que não? Indiana Jones também foi professor”.

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