A REORDENAÇÃO PÓS-CRISE
O Brasil atrelou seu destino à lógica dos mercados financeiros desregulados a partir dos anos 90. A prerrogativa da intervenção pública - sobretudo no setor financeiro - ficou subordinada a regras que protegem grupos de interesses locais e internacionais; os mesmos que ameaçam pôr em movimento uma montanha desordenada de capitais voláteis, cuja força é suficiente para reverter a retomada do desenvolvimento.
Redação - Carta Maior
Moeda é poder. O consenso aparente em torno da regulação dos mercados nesse momento esconde a dimensão política da crise. Existe hegemonia embutida em uma nota de dólar; explorados e exploradores na definição da taxa de juro. Está em jogo a reordenação da hierarquia entre moedas abalada pelo colapso da ordem neoliberal. A prática não ecoa o consenso reformista dos discursos oficiais. Foi assim também em 1929.
Uma Guerra mundial levou para os campos de batalha a arbitragem de impasses que paralisavam as nações, corroíam regimes monetários e minavam a produção e circulação da riqueza. A nova correlação de forças sancionada pelo argumento bélico foi legitimada em Bretton Woods, em 1944, quando a velha liderança britânica cedeu lugar à supremacia dos EUA, dos seus bancos, da sua indústria e da sua moeda em todo o planeta.
A disputa em marcha no mundo encontra urgências e impasses equivalentes na vida interna das nações. O Brasil não é exceção: US$ 553,5 bilhões de dólares atam o país à ciranda mundial.
Decisões tomadas desde os anos 90, destinadas a atrair, incentivar e garantir a mobilidade do capital estrangeiro na economia nacional restringiram a autonomia da política econômica e podem enfraquecer o Brasil nas respostas para enfrentar a crise. A prerrogativa da intervenção pública - sobretudo no mercado financeiro - ficou subordinada a regras que fortalecem e protegem grupos de interesses locais e internacionais; os mesmos que agora ameaçam por em movimento uma montanha desordenada de capitais voláteis, cuja força é suficiente para reverter a retomada do desenvolvimento.
Hoje esses recursos equivalem a US$ 553,5 bilhões. Um poder de pressão quase três vezes (2,7 vezes) superior à margem de autonomia proporcionada pelas reservas cambiais acumuladas desde 2003 (US$ 200 bilhões). Assimetrias dessa ordem ajudam a entender um paradoxo da crise: a exemplo do Brasil, inúmeras nações da periferia do capitalismo clamam por reformas na arquitetura financeira mundial, mas hesitam em aplicá-las internamente.
Para entender como essa dependência se cristalizou e a dificuldade para reverter algo que aprisiona a economia numa espécie de “caos calmo”, Carta Maior ouviu vários economistas entre os quais a professora Daniela Magalhães Prates, da Unicamp. Especialista em economia internacional, Daniela publicou recentemente um artigo oportuno em parceria com Marcos Antonio Macedo Cintra, também da Unicamp: “Keynes e a hierarquia de moedas: possíveis lições para o Brasil” , texto incluído na coletânea “Economia do Desenvolvimento , teoria e políticas keynesianas”, organizada por João Sicsú e Carlos Vidoto.
I) Recursos voláteis equivalem a quase três vezes o total das reservas brasileiras
Dois pontos reafirmam a pertinência desse debate no momento. O primeiro é a gravidade e a dimensão do que está em jogo. Dada a inexistência de controles de capitais, o montante de dólares que entrou e poderá sair do país a qualquer momento impressiona pelo poder desestabilizador. “Estamos falando”, explica a economista Daniela Prates, "de US$ 553,5 bilhões que formam o Passivo Externo Líquido (PEL) do país”. Trata-se do saldo entre o estoque dos investimentos externos (financeiros e produtivos) existentes na economia; mais o valor da dívida externa; menos investimentos de brasileiros no exterior e reservas cambiais. Daí a denominação passivo “líquido” – uma medida de dependência mais exata que o conceito de dívida externa já que inclui toda ordem de remessas possíveis, desde juros, royalties, lucros a fugas potenciais do dinheiro de curto prazo.
Há uma outra forma de medir esse flanco, segundo a professora Daniela Prates . O saldo, neste caso, contabiliza o montante bruto de passivos de curto prazo, sem descontar as reservas. Hoje isso daria pouco mais de US$ 531 bilhões: 2,7 vezes o total das reservas. São recursos sujeitos a fugas e resgates abruptos, facilitados pelas decisões tomadas a partir dos anos 90 e agora postas em xeque. “Não existe estabilidade econômica numa situação como essa. Para ter segurança em regime de mobilidade de capitais só mesmo com reservas chinesas (US$ 1,5 trilhão)”, alfineta.
II) Armínio Fraga soldou o país ao cassino financeiro; sucessores mantiveram laços
O Brasil, a exemplo da maioria dos países da periferia do capitalismo, atrelou seu destino à lógica dos mercados financeiros desregulados a partir dos anos 90. O governo Collor já havia ensaiado alguns passos nessa direção, mas o ponto central da solda entre o mercado interno e a finança volátil foi consumado pelo então presidente do Banco Central no governo FHC, Armínio Fraga. Ex-funcionário do mega-especulador George Soros, Armínio trouxe para o BC um reconhecido traquejo no jogo pesado das finanças desreguladas. Foi essa experiência e o endosso do governo PSDB/PFL às teses do Estado mínimo que orientaram a decisão política de liberar o entra-e-sai de capitais de curto prazo no país em janeiro de 2000.
A Resolução 2.689 autorizou a aquisição de ações e títulos pelo capital estrangeiro, bem como liberou-o para captar, interligar e especular em mercados de derivativos. Hoje, o ex-presidente do BC beneficia-se dessa medida à frente do Gávea, um “fundo agressivo” aberto a investidores da elite do dinheiro fugaz. Gente selecionada pela carteira e apetite para correr risco altos em troca de retornos sempre acima da média mundial.
Os sucessores de Armínio Fraga, é forçoso dizer, ampliaram em vez de cortar os laços com a ciranda global. Restrições à aquisição e remessas de dólares foram eliminadas em março de 2005 pelo então ministro Antonio Palocci. Em julho de 2006, concedeu-se isenção fiscal na aquisição de títulos públicos por fundos estrangeiros.
“Boa parte da vulnerabilidade brasileira nesta crise decorre das implicações de medidas que facilitaram a mobilidade de capitais na economia”, confirma a economista da Unicamp.
III) Um jogo que dá direito à fatias crescentes da riqueza sem contribuir para gerá-la
Investidores estrangeiros e nacionais dispõem hoje de um variado cardápio de facilidades e “inovações” que garantem salvo-conduto na porta-giratória de um mercado amplamente integrado ao jogo da finança global. Um fundo como o Gems Investimentos de origem israelense, com sede em Londres, que capta recursos no Brasil e centraliza sua contabilidade no paraíso fiscal de Luxemburgo é um exemplo de como as coisas funcionam.
O Gems, como outros, explora uma novidade introduzida no país há dois anos muito apreciada antes crise. O “produto” de ponta da “indústria” de fundos permite captar recursos em reais; aplicar em ativos estrangeiros no exterior (ações, commodities, cotas de outros fundos, sub-primes etc); não deixa marcas de remessas na contabilidade do aplicador; não exige abertura de conta lá fora, nem incorre em ônus fiscal no estrangeiro. Tudo isso legalmente.
Gestores mais criativos seduzem clientes insaciáveis com promessas de metas “alfa". Trata-se de dobrar rendimentos numa sucessão fulminante de apostas globais feitas num curto espaço de tempo e à descoberto (em bom português: apostando o que não se têm). Esse são alguns indícios de que a regulação em pauta requer algo mais do que apelos sensatos à prudência e à temperança na gestão financeira. O que está em jogo é desmontar uma usina de lucros meteóricos que assegura a seus participantes o direito a fatias cada vez generosas da riqueza real, sem contribuir um centavo para que ela cresça em proporções equivalentes. É uma rota de colisão: de um lado, a voragem estrutural do capital fictício; de outro, o risco de colapso da sociedade que já não consegue mais saciá-lo sem se auto-destruir.
IV) Desregulação internaliza instabilidades e, ao mesmo tempo, engessa o Estado
Graças à livre circulação de capitais fundos hedge – assim como bancos e empresas - podem apostar livremente contra e à favor da moeda brasileira na bolsa local de mercadoria. Idealmente, o equilíbrio de contratos entre comprados e vendidos (respectivamente, apostas na alta e na baixa da moeda norte-americana, por exemplo) criaria um espaço de liquidez para proteger operações indexadas ao câmbio, caso do comércio exterior e empréstimos em moeda estrangeira. O colapso atual evidenciou que essa finalidade foi desvirtuada em todo o mundo e aqui também. Operações especulativas muito superiores às necessidades de hedge (proteção) seduziram exportadores e bancos que apostaram maciçamente na direção errada ao prever a queda do dólar no mercado brasileiro.
Estima-se que o mico referente a distintas modalidades de contratos de risco e opções “vendidas” em dólar possa alcançar entre US$ 40 bilhões a US$ 50 bilhões. Os casos da Sadia e da Aracruz ilustram o tamanho do prejuízo que poderá esfarelar balanços, a depender da evolução cambial: a primeira teria assumido posições de risco no valor de US$ 7,6 bilhões; a segunda, de US$ 8,5 bilhões.
V) O especulador entra sem trazer capitais, aluga fiança, aposta alto e altera o câmbio
Uma particularidade das operações com derivativos cambiais na bolsa brasileira é que os contratos são zerados em moeda nacional. Em tese, isso evitaria uma corrida ao mercado físico do dólar; vantagem anulada, todavia, pela mobilidade de capitais que potencializa a instabilidade inerente às apostas em derivativos. “O especulador estrangeiro não precisa internalizar recursos para fazer apostas na bolsa brasileira”, explica a economista Daniela Prates. “Ele pode fixar posições altamente alavancadas ( muito superiores aos recursos próprios) dispondo apenas de uma carta de fiança fornecida por banco local; ou mediante o aluguel de títulos depositados como margem de garantia na bolsa”, esclarece a professora da Unicamp.
Decorrem daí inúmeras distorções que convergem para gerar forte instabilidade na formação da taxa de câmbio, um dos preços decisivos do cálculo econômico. “O governo acumula reservas com base em fluxos físicos de capitais e mercadorias”, esclarece Daniela. “Porém, como dispensam ingresso efetivo de moeda, as operações com derivativos não deixam uma contrapartida equivalente no balanço de pagamento, nem nas reservas. Cria-se assim uma dissociação perigosa. Mudanças abruptas na direção e nos volumes das apostas, associadas a fugas de investidores, emitem um sinal forte que contamina a definição da taxa de câmbio no mercado físico. Como as reservas são inferiores ao deslocamento potencial em jogo, isso gera incertezas que se propagam por toda a economia”, ensina.
VI) Idéias de Keynes em Bretton Woods ainda enfrentam resistências, 64 anos depois
As conseqüências e constrangimentos que a mobilidade de capitais impõe às políticas de desenvolvimento foram exaustivamente estudadas por John Maynard Keynes nos anos 40. Em 1944, como representante inglês em Bretton Woods, ele propôs uma nova arquitetura financeira mundial .A criação de uma moeda global contábil (obancor) e um banco central dos bancos centrais (clearing union), constituíam mecanismos de coordenação indispensáveis, no seu entender, para harmonizar assimetrias entre economias ricas e pobres e garantir um ciclo estável de prosperidade no pós-Guerra. Impor uma disciplina espartana à mobilidade dos capitais era uma espécie de lei de bronze dessa arquitetura. As propostas de Keynes, como se sabe, foram rejeitadas pela delegação norte-americana que enxergou aí a tentativa inglesa de restringir a liderança mercantil e financeira conquistada pelos EUA durante a Guerra, que dava ao dólar o papel de moeda de reserva universal.
Dizer que os acontecimentos de hoje são uma conseqüência da derrota de Keynes em Bretton Woods é uma parte da verdade. Na realidade, Keynes conseguiu inserir nos estatutos de fundação do FMI - proposta vitoriosa norte-americana - o direito de as nações acionarem controles de capitais em condições críticas. Embora persista formalmente nos estatutos do Fundo, o tempero keynesiano foi sepultado na prática pelo avanço da desregulação nos anos 90. Algo semelhante se deu no Brasil, na medida em que a lei do capital estrangeiro de 1961 (nº 4.131) nunca foi revogada; mas acabou reduzida a um zumbi jurídico por conta das decisões tomadas nos últimos dez anos.
Sessenta e quatro anos depois, os temas e as propostas levantados por Keynes voltam à agenda obrigatória dos chefes de Estado, inclusive do Brasil. O mundo do crash de 2008 é mais complexo; o jogo de forças inclui potências que redimensionaram a geopolítica dopós-guerra; a China e os blocos econômicos ameaçam a hegemonia norte-americana. Ainda assim será difícil vencer a resistência dos EUA em aceitar uma nova hierarquia monetária que reduza seu poder expresso em dólares.
VII) Um dos custos para atrair e manter capitais voláteis é pagar juros paralisantes
A espada de incertezas erguida sobre as políticas econômicas tende a promover uma acomodação baseada em taxas de juros impiedosamente hostis ao desenvolvimento. Em vez de controlar e selecionar investimentos que interessam, recorre-se a uma espécie de taxa- tampão, alta o suficiente para tornar sedentário um capital que por natureza é errático e especulativo. Num momento em que os BCs de todo o mundo reduzem o custo do dinheiro para refrear a espiral recessiva, o Brasil mantém a Selic em 13,75%. E ainda ameaça elevá-la novamente.
VIII) Crise desmente a tese de que livres mercados asseguram liquidez just-in-time
Juros altos radicalizam assimetrias macroeconômicas em torno de objetivos naturalmente díspares mas desejáveis, ironicamente sintetizados na tríade impossível perseguida por todas as escolas econômicas. A saber: simultaneamente sustentar o crescimento, estabilizar o câmbio e controlar a inflação. “Mais que uma defasagem específica entre reservas e passivo externo, a crise põe em xeque a tese de que a liquidez mundial tornaria desnecessário adotar o controle de capitais para estabilizar o crescimento”, explica professora Daniela Prates. Segundo a ortodoxia dos anos 90, a liquidez inerente à desregulação faria do mercado mundial um provedor just-in-time, harmonizando necessidades distintas entre contas correntes, déficits e superávits comerciais.
Sob certas circunstâncias, a panacéia entregou o que prometeu. Mas ao reverter o ciclo de liquidez para uma fuga planetária rumo ao dólar, verificou-se o quanto são frágeis as certezas ideológicas que menosprezam circunstâncias e contradições históricas. No Brasil, a exemplo do que ocorre em muitos países, o caos calmo expresso no passivo externo líquido pode transformar-se em tempestade tropical. “Reverter esse quadro em plena crise, naturalmente, é muito complicado”, admite Daniela Prates. Ainda que alguns avanços ocorram nas cúpulas internacionais, nenhum país escapará, porém, da necessidade de adaptar a agenda da regulação ao seu idioma e circunstância. Desde já o Brasil precisa decidir em que medida vai manter seu destino amarrado a um trem sem trilhos que justamente por isso mostrou-se capaz de descarrilhar o mundo.
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