RODRIGO RANGEL E ROBERTO CASTRO - Cabrobó (PE) ISTO É
Faz 189 anos que o sertanejo ouve uma idéia milagrosa que depende de São Francisco. A esperança desse povo sofrido é acabar como uma desgraça que já vitimou cerca de três milhões de pessoas: a falta d'água. Dessa parte do Brasil, 25 milhões de pessoas migraram para outros Estados, num êxodo de proporções bíblicas. Uma dessas vítimas da falta d'água foi o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que montou em 1953 na caçamba de um caminhão pau-de-arara com a sua mãe, Lindu, e seus irmãos.
Lula foi um dos sertanejos que cresceram ouvindo dizer que a transposição das águas do rio São Francisco seria a solução para todas essas mazelas. Uma idéia que surgiu quando o Brasil ainda era Reino Unido a Portugal e Algarves, governado por Dom João VI. Seis projetos foram tentados ao longo desses quase dois séculos - mas nunca saíram do papel. Na semana passada, Lula resolveu enfrentar de vez as resistências.
Em Cabrobó, no sertão pernambucano, 47 homens do Exército trabalham na abertura do primeiro canal da propalada transposição, até há pouco enroscada em impedimentos judiciais e na oposição de um sem número de organizações nãogovernamentais.
Em uma semana de trabalho, já estavam demarcados os pontos da primeira parte dos 740 quilômetros de canais projetados para levar água do Velho Chico ao semi-árido de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. É o maior negócio do governo federal. Até 2010, a previsão é de que a obra consuma pelo menos R$ 6,6 bilhões. Por enquanto, porém, tudo não passa de um grande ensaio. As licitações para a contratação das empreiteiras que sucederão o serviço dos militares e serão encarregadas de executar mais de 80% do projeto estão atrasadas. São mais de 110 propostas. O processo deve levar mais um mês. Isso se não houver nenhuma contestação de resultado, o que é praticamente improvável em se tratando de um serviço bilionário.
A transposição não vai acabar com a água do rio, como temem índios e ambientalistas, mas, sozinha, ela não vai eliminar a seca no Nordeste Setentrional, como pregam repetidamente o governo e o presidente. A obra não põe fim à seca porque, mesmo após a construção dos 740 km de canais, ainda faltarão redes de distribuição menores que levem a água a todos os povoados do sertão, dispersos numa área de 400 mil km2. Já o argumento de que o projeto pode acabar com a vazão do rio é igualmente manco porque só 1% de sua vazão vai ser desviada.
Antes de ser um milagre de São Francisco, a transposição é um projeto de desenvolvimento regional que poderá, de fato, alavancar a economia de uma região até então relegada a segundo plano. Se concretizados, os dois eixos do projeto (Norte e Leste) carrearão água para médias e grandes cidades e, ao mesmo tempo, para irrigar grandes apostas do agronegócio, principalmente nos ramos de fruticultura e criação de camarão. O Eixo Norte é o que parte de Cabrobó. São 400 quilômetros de canal principal, mais 110 quilômetros de ramal, de lá até bacias menores do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. É justamente esse eixo, maior e mais caro, que os críticos do projeto acusam de beneficiar quem não precisa, como os latifundiários plantadores de fruta. O Eixo Leste é o que, de fato, tem mais chances de alterar a vida dos flagelados da seca, por passar mais perto de regiões com carência de água. Ele começa perto da cidade pernambucana de Floresta e desemboca no rio Paraíba, no Estado de mesmo nome. A previsão mais otimista diz que resultados concretos só aparecerão em 2010. "É quando deverão estar sendo concluídos o Eixo Leste e pelo menos 60% do Eixo Norte", diz o engenheiro civil Rômulo Macedo, coordenador-geral do projeto. Evitar que, a partir daí, o projeto se transforme numa nova Transamazônica, símbolo dos projetos megalômanos brasileiros eternamente inconclusos, diz Rômulo, "vai depender de quem estiver no governo".
Em Cabrobó, onde estará o primeiro ponto de captação da água do São Francisco, o foco de resistência está na Ilha de Assunção, uma porção de 6,2 mil hectares de terras cercada pelas águas do rio, onde vivem 4,2 mil índios da etnia truká. É um povo que pouco se parece com índios de verdade. Os trukás, há décadas miscigenados com brancos e negros, estão mais para caboclos. Ganham dinheiro criando bodes e plantando arroz na ilha. Chegam a arrendar pedaços da terra que a Funai lhes assegurou. Vivem como o homem branco, mas são reconhecidos oficialmente como índios e, sob a proteção que a lei lhes dá, prometem criar embaraços para o governo. Eles temem que a transposição acabe com os peixes e diminua a água que eles utilizam nas suas plantações. "Isso que estão fazendo é uma ação covarde, vai colocar em risco o futuro do rio", critica Mozanir Araújo, um dos líderes trukás. Para o índio, a opção do governo de iniciar a obra com mão-de-obra do Exército é uma forma de debelar reações. "É para intimidar", acusa. O rezador da tribo, Antônio Emiliano, 74 anos, acha o projeto irreversível. "Não tem mais jeito, não", afirma, "o Lula vai acabar com isso aqui". Um detalhe reforça a tese de que o Planalto pôs os militares para deflagrar a obra como forma de dirimir resistências: boa parte da tarefa que a eles caberá, como implosão de pedras e até transporte de material, será terceirizada. Na quinta-feira 14, ISTOÉ assistiu a uma reunião entre representantes do Ministério da Integração e oficiais que cuidam da obra. Houve bate-cabeça, sob o olhar atento do capitão do Exército americano Jack Logan, que tudo anotava. Seria um intruso se informando sobre um projeto tido como estratégico pelo governo brasileiro? "Ele está fazendo um estágio conosco", apressa-se em dizer o coronel Newton Belinatti, chefe de Operações do 2º Grupamento de Engenharia.
Os brancos da cidade apostam que a obra levará dinheiro ao município e a seus 30 mil moradores. "É bom para a cidade e para o Nordeste como um todo porque vai trazer desenvolvimento", comemora o prefeito de Cabrobó, Eudes Caldas (PTB). Mesmo incipiente, a obra já traz seu impacto. O preço dos aluguéis aumentou. E o governo federal já começa a liberar o dinheiro da desapropriação das terras onde o canal vai passar.
A maior bolada caberá a seu Antônio Simões, ou Antônio Russo: mais de R$ 1 milhão. "Eu tô feliz com isso", diz.
Existem outros entraves para operar o milagre de São Francisco com que sonha o presidente Lula. A Controladoria Geral da União ordenou que não seja aberta a proposta da Gautama, a construtora que patrocinava a máfia da Navalha e que se habilitou para concorrer a um dos 14 lotes em que a obra foi dividida. Isso põe a licitação em risco porque a própria Gautama, mais tarde, pode tentar na Justiça anular o processo. Enquanto as empreiteiras não vêm, o Exército capina pasto e demarca os pontos onde vai ser escavado o primeiro canal. Avançar, não pode. Faltam ainda o biólogo e o engenheiro florestal para avalizar o desmate das primeiras porções de caatinga.
Faz 189 anos que o sertanejo ouve uma idéia milagrosa que depende de São Francisco. A esperança desse povo sofrido é acabar como uma desgraça que já vitimou cerca de três milhões de pessoas: a falta d'água. Dessa parte do Brasil, 25 milhões de pessoas migraram para outros Estados, num êxodo de proporções bíblicas. Uma dessas vítimas da falta d'água foi o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que montou em 1953 na caçamba de um caminhão pau-de-arara com a sua mãe, Lindu, e seus irmãos.
Lula foi um dos sertanejos que cresceram ouvindo dizer que a transposição das águas do rio São Francisco seria a solução para todas essas mazelas. Uma idéia que surgiu quando o Brasil ainda era Reino Unido a Portugal e Algarves, governado por Dom João VI. Seis projetos foram tentados ao longo desses quase dois séculos - mas nunca saíram do papel. Na semana passada, Lula resolveu enfrentar de vez as resistências.
Em Cabrobó, no sertão pernambucano, 47 homens do Exército trabalham na abertura do primeiro canal da propalada transposição, até há pouco enroscada em impedimentos judiciais e na oposição de um sem número de organizações nãogovernamentais.
Em uma semana de trabalho, já estavam demarcados os pontos da primeira parte dos 740 quilômetros de canais projetados para levar água do Velho Chico ao semi-árido de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. É o maior negócio do governo federal. Até 2010, a previsão é de que a obra consuma pelo menos R$ 6,6 bilhões. Por enquanto, porém, tudo não passa de um grande ensaio. As licitações para a contratação das empreiteiras que sucederão o serviço dos militares e serão encarregadas de executar mais de 80% do projeto estão atrasadas. São mais de 110 propostas. O processo deve levar mais um mês. Isso se não houver nenhuma contestação de resultado, o que é praticamente improvável em se tratando de um serviço bilionário.
A transposição não vai acabar com a água do rio, como temem índios e ambientalistas, mas, sozinha, ela não vai eliminar a seca no Nordeste Setentrional, como pregam repetidamente o governo e o presidente. A obra não põe fim à seca porque, mesmo após a construção dos 740 km de canais, ainda faltarão redes de distribuição menores que levem a água a todos os povoados do sertão, dispersos numa área de 400 mil km2. Já o argumento de que o projeto pode acabar com a vazão do rio é igualmente manco porque só 1% de sua vazão vai ser desviada.
Antes de ser um milagre de São Francisco, a transposição é um projeto de desenvolvimento regional que poderá, de fato, alavancar a economia de uma região até então relegada a segundo plano. Se concretizados, os dois eixos do projeto (Norte e Leste) carrearão água para médias e grandes cidades e, ao mesmo tempo, para irrigar grandes apostas do agronegócio, principalmente nos ramos de fruticultura e criação de camarão. O Eixo Norte é o que parte de Cabrobó. São 400 quilômetros de canal principal, mais 110 quilômetros de ramal, de lá até bacias menores do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. É justamente esse eixo, maior e mais caro, que os críticos do projeto acusam de beneficiar quem não precisa, como os latifundiários plantadores de fruta. O Eixo Leste é o que, de fato, tem mais chances de alterar a vida dos flagelados da seca, por passar mais perto de regiões com carência de água. Ele começa perto da cidade pernambucana de Floresta e desemboca no rio Paraíba, no Estado de mesmo nome. A previsão mais otimista diz que resultados concretos só aparecerão em 2010. "É quando deverão estar sendo concluídos o Eixo Leste e pelo menos 60% do Eixo Norte", diz o engenheiro civil Rômulo Macedo, coordenador-geral do projeto. Evitar que, a partir daí, o projeto se transforme numa nova Transamazônica, símbolo dos projetos megalômanos brasileiros eternamente inconclusos, diz Rômulo, "vai depender de quem estiver no governo".
Em Cabrobó, onde estará o primeiro ponto de captação da água do São Francisco, o foco de resistência está na Ilha de Assunção, uma porção de 6,2 mil hectares de terras cercada pelas águas do rio, onde vivem 4,2 mil índios da etnia truká. É um povo que pouco se parece com índios de verdade. Os trukás, há décadas miscigenados com brancos e negros, estão mais para caboclos. Ganham dinheiro criando bodes e plantando arroz na ilha. Chegam a arrendar pedaços da terra que a Funai lhes assegurou. Vivem como o homem branco, mas são reconhecidos oficialmente como índios e, sob a proteção que a lei lhes dá, prometem criar embaraços para o governo. Eles temem que a transposição acabe com os peixes e diminua a água que eles utilizam nas suas plantações. "Isso que estão fazendo é uma ação covarde, vai colocar em risco o futuro do rio", critica Mozanir Araújo, um dos líderes trukás. Para o índio, a opção do governo de iniciar a obra com mão-de-obra do Exército é uma forma de debelar reações. "É para intimidar", acusa. O rezador da tribo, Antônio Emiliano, 74 anos, acha o projeto irreversível. "Não tem mais jeito, não", afirma, "o Lula vai acabar com isso aqui". Um detalhe reforça a tese de que o Planalto pôs os militares para deflagrar a obra como forma de dirimir resistências: boa parte da tarefa que a eles caberá, como implosão de pedras e até transporte de material, será terceirizada. Na quinta-feira 14, ISTOÉ assistiu a uma reunião entre representantes do Ministério da Integração e oficiais que cuidam da obra. Houve bate-cabeça, sob o olhar atento do capitão do Exército americano Jack Logan, que tudo anotava. Seria um intruso se informando sobre um projeto tido como estratégico pelo governo brasileiro? "Ele está fazendo um estágio conosco", apressa-se em dizer o coronel Newton Belinatti, chefe de Operações do 2º Grupamento de Engenharia.
Os brancos da cidade apostam que a obra levará dinheiro ao município e a seus 30 mil moradores. "É bom para a cidade e para o Nordeste como um todo porque vai trazer desenvolvimento", comemora o prefeito de Cabrobó, Eudes Caldas (PTB). Mesmo incipiente, a obra já traz seu impacto. O preço dos aluguéis aumentou. E o governo federal já começa a liberar o dinheiro da desapropriação das terras onde o canal vai passar.
A maior bolada caberá a seu Antônio Simões, ou Antônio Russo: mais de R$ 1 milhão. "Eu tô feliz com isso", diz.
Existem outros entraves para operar o milagre de São Francisco com que sonha o presidente Lula. A Controladoria Geral da União ordenou que não seja aberta a proposta da Gautama, a construtora que patrocinava a máfia da Navalha e que se habilitou para concorrer a um dos 14 lotes em que a obra foi dividida. Isso põe a licitação em risco porque a própria Gautama, mais tarde, pode tentar na Justiça anular o processo. Enquanto as empreiteiras não vêm, o Exército capina pasto e demarca os pontos onde vai ser escavado o primeiro canal. Avançar, não pode. Faltam ainda o biólogo e o engenheiro florestal para avalizar o desmate das primeiras porções de caatinga.
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