29 de setembro de 2010

Petrobrás se torna segunda maior petrolífera do mundo

 

“Ao contrário do passado, não estamos aqui para debilitar o Estado ou alienar o patrimônio público”, disse o presidente Lula na Bovespa

Um dia após concluir a maior capitalização do planeta, em montante que ultrapassou os R$ 120 bilhões (US$ 70 bilhões), elevando o valor de mercado da empresa para US$ 220 bilhões, a Petrobrás iniciou a oferta pública de ações na Bolsa de Valores de São Paulo na sexta-feira (24) em clima de festa e ao som de “Aquarela do Brasil”.

“Ao contrário do passado, não estamos aqui para debilitar o Estado ou alienar o patrimônio público. O que se materializa aqui é a decisão soberana de uma sociedade de capitalizar o seu futuro, o futuro do seu sistema produtivo em benefício das gerações do presente e das gerações que virão depois de nós”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A capitalização, esclareceu, “é uma das salvaguardas criadas pelo governo para evitar que essa riqueza se perca num labirinto de desperdícios e interesses equivocados. Seu destino é sagrado. Trata-se de impulsionar a competitividade do sistema econômico para garantir um longo ciclo de desenvolvimento, capaz de erradicar de vez a pobreza na vida do nosso povo. Mas, sobretudo, trata-se de universalizar a educação pública de qualidade que garanta um mesmo ponto de partida para todos os filhos da nossa terra”.

No lado de fora da Bovespa, ao lado da réplica de uma torre de petróleo e de uma imensa bandeira nacional, militantes da CGTB e do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados saudaram a chegada do presidente: “Lula, guerreiro do povo brasileiro” e “O pré-sal é nosso!”. A intensidade dos aplausos retratava o momento histórico em que a Petrobrás se transformou na segunda maior empresa do setor de petróleo do mundo, com o governo federal aumentando a sua participação na estatal de menos de 40% para 48%. A iniciativa cria as condições que permitirão o fortalecimento do caixa da estatal e o aumento do seu patrimônio líquido, que assim tem elevada a sua capacidade de investimento e reforçadas as condições para que seja a operadora única do pré-sal.

Lula fez um contraponto aos anos de neoliberalismo, recordando que “tivesse emergido em outros tempos, esse patrimônio poderia ter sido alienado; alienado na voragem de liquidações impostas pelo estrangulamento de uma economia fragilizada e no vazio de um Estado dissociado dos interesses nacionais. Hoje, ao contrário, é uma riqueza que se incorpora naturalmente à solidez de um percurso em marcha”.

Conforme o presidente, “o que temos em mãos é superior a todas as oportunidades que já foram propiciadas pela nossa história. Somos protagonistas privilegiados dos sonhos e projetos pelos quais tantos brasileiros e brasileiras se mobilizaram e não poucos deram a própria vida: o sonho de um Brasil de todos. Estamos muito mais confiantes. O país que todos nós herdamos chegará mais próspero, livre e justo aos que vierem depois de nós”.

O presidente lembrou ainda que, “no próximo 3 de outubro, a festa democrática das urnas coincidirá com a festa histórica dos 57 anos de existência da nossa Petrobrás. Maior empresa da América Latina, uma das maiores companhias do mundo, a Petrobrás é um trunfo extraordinário para o desenvolvimento do Brasil”.

Para a ex-ministra e candidata à Presidência da República, Dilma Rousseff, a capitalização “mostra que o Brasil mudou de patamar, não é mais um país que pensa pequeno. Não precisamos mudar para X para captar dinheiro no mercado internacional”.

LEONARDO SEVERO

28 de setembro de 2010

China e Rússia assinam acordos para cooperação ampla na área de energia

 

   A China e a Rússia têm dado grande importância para cooperação bilateral no setor de energia em que ambos os países têm obtido êxitos e contam com amplas perspectivas. Todo o esforço de cooperação profunda nesse âmbito entre os dois países terá significado estratégico”, afirmou o vice-primeiro ministro chinês, Wang Quishan, durante encontro com vice- premier russso, Igor Sechin, em Tianjin no norte da China, durante reunião preparatória para a visita do Presidente da Rússia, Dimitry Medvedev, à China em 26 e 28 de setembro.

   A China está disposta a colaborar com a Rússia para expandir a cooperação energética em petróleo, gás natural, energia elétrica, nuclear, carvão entre outros, com ânimo de cooperação ativa em benefício mútuo, acrescentou Wang Quishan.

  Em agosto a Rússia lançou oficialmente o projeto de construção de oleodutos que transportará petróleo da Sibéria oriental para a China e que estará em pleno funcionamento no final de 2010. O projeto é parte de um acordo bilateral de crédito para petróleo firmado em 2009 pelo qual a China oferecerá a Rússia um crédito de longo prazo de 25 milhões de dólares e a Rússia enviará à China 300 milhões de toneladas de petróleo cru.

  Igor Sechin reafirmou que “a Rússia está disposta a subministrar continuamente e por longo tempo petróleo através do oleoduto para a China assim como continuar promovendo as discussões bilaterais cada vez mais estreitas sobre o fornecimento à China do gás natural, carvão, energia elétrica e nuclear, eficiência energética e novas energias.”

  Durante a reunião foram assinados três documentos de cooperação na área de petróleo, carvão e liquefação de carvão e em seguida os vice-ministros dos dois países participaram da cerimônia de colocação da primeira pedra fundamental da Refinaria de Petróleo China-Rússia Earstern Petrochemical em Tianjin.

ROSANITA CAMPOS

EUA: Bancos tomam moradias de 95 mil famílias só em agosto

 

Recorde de despejos em agosto é igual à média de um ano, antes do colapso nos EUA. Em 2009, 1 milhão de famílias perderam as casas e a previsão para este ano é de mais 1,2 milhão de despejos


   Só em agosto, mais de 95.000 famílias tiveram suas casas
tomadas pelos bancos nos EUA – um número recorde -, revelou a Realty Trac, a principal consultoria sobre mercado imobiliário. Um aumento de 25% em relação a 2009. Outras 147.000 famílias tiveram o leilão de suas casas marcado pelos bancos.

Assim, num único mês, quase 400 mil mulheres, crianças, chefes de família e idosos foram despejados de suas casas e jogados na rua. Alguns, empurrados de volta à casa dos pais ou de parentes; outros, em busca de precária habitação alugada e até albergues. Ou mesmo, nos casos mais dramáticos dos “novos pobres”, dormindo no carro ao relento. E mais 588 mil pessoas foram colocadas na iminência de despejo.

Ainda segundo a Realty, 1 milhão de casas foi tomado pelos bancos em 2009 – isto é, 1 milhão de famílias perderam seu teto. A consultoria previu que esse total irá aumentar este ano para 1,2 milhão. A média, antes do colapso nos EUA, era de 100.000 casas ao ano – um décimo dos números atuais. Agora, além dos já citados 2,2 milhões de casas (1 milhão/2009 + 1,2 milhão/2010 de despejos), há outros 3,2 milhões em algum estágio de cobrança judicial.

DESASTRE

O desastre se repete no país inteiro, mas é mais grave em Nevada, Flórida, Arizona, Califórnia, Idaho, Utah, Georgia, Michigan, Illinois e Hawai. 1 de cada 381 casas na mira dos abutres. As vítimas - mutuários que ficaram desempregados, ou que perderam a maior parte da aposentadoria em ações que viraram fumaça, e seus familiares. E que viram o preço de suas casas despencar, tornando impossível pagar a hipoteca, e sem ter como vender ou refinanciar.

Entre notificações de inadimplência, marcações de leilão e “reintegrações de posse”, os bancos acionaram um total de 338.886 casas em agosto – mais 4% em relação ao mês anterior. Também venderam em liquidação 41.075 casas tomadas. Menos de um-terço das casas retomadas “estão no mercado”, afirmou o vice-presidente da Realty, Rick Sharga.

É que, ao mesmo tempo que os bancos precisam limpar seus balanços dos maus empréstimos, não podem despejar de uma só vez todas as casas tomadas para venda, porque então os preços, já em recorde de baixa, iriam ao chão. 23% das casas estão “submersas”, isto é, seu valor atual é menor que a dívida com o banco, e em vários casos os proprietários devolveram as chaves e foram embora por absoluta impossibilidade de arcar com a hipoteca.

“Menos compradores significa que irá levar mais tempo para liquidar o estoque em excesso; quanto mais durar esse estoque, maior a pressão sobre os preços no conjunto do mercado de imóveis”, assinalou Sharga. “Quanto maior a pressão [para baixo] sobre os preços, mais casas estão em risco de irem a liquidação por terem seu valor derrubado”, acrescentou.

LIQUIDAÇÃO

A Associação Regional de Corretores de Imóveis de Orlando, Flórida, - uma das áreas mais afetadas - exemplificou como isso vem ocorrendo. Uma casa que, há três anos atrás, tinha preço médio de US$ 265.000, agora é oferecida a US$ 165.000. Mas, em liquidação, que cai para US$ 100.000, e mais ainda, para US$ 72.000, se for retomada pelo banco, segundo a corretora Isabel Ward. “A venda das casas tomadas pelos bancos e as liquidações estão definitivamente derrubando os preços. Vendas em liquidação existiam há muito tempo, mas não prevaleciam. Hoje, uma em cada duas vendas é por liquidação”.

Mas, como os noticiários de televisão se cansaram de mostrar, houve casos ainda mais extremos. Casas vendidas por US$ 1, para se livrar da hipoteca; redondezas inteiras, antes altamente valorizadas, e agora esvaziadas. A derrubada do preço das casas e as hipotecas impossíveis de serem pagas interagem com a fraqueza na construção de casas novas e na revenda de casas usadas, em vigor, para ameaçar o setor imobiliário de – como os norte-americanos gostam de chamar – um “duplo mergulho” na construção, que poderá atingir em cheio os bancos.

O aumento recorde no número de casas tomadas pelos bancos foi apontado pelo analista John Burns como sintoma de que “está vindo à luz o estoque de casas oculto pelos bancos”. Já as vendas de novas casas, após melhora em julho, “caíram 12% em agosto”. “Ano-sobre-ano, a queda foi de 32%, o mais baixo nível já registrado desde 1963”. Como indagou outro analista do setor imobiliário, de outra cidade assombrada pelo “foreclosure”, Phoenix: “está vindo uma nova maré de inadimplência?”
ANTONIO PIMENTA

21 de setembro de 2010

No mundo da Blackwater

(2)

Continuação da edição anterior

À medida que crescia a confiança da CIA na Blackwater, aumentavam as responsabilidades da empresa, que passaram da proteção estática à segurança móvel – cobertura ao pessoal da Agência, sempre com medo de suicidas-bombas, emboscadas e bombas de fabricação caseira ao longo e às margens das estradas, em suas andanças pelo país. Mas, em 2005, a Blackwater, acostumada a guardar os agentes da CIA, começava a ficar um bocado parecida com a própria CIA

ADAM CIRALSKY

A paisagem afegã, vista a uma velocidade de 200 nós, é uma neblina cáqui. O terreno é ainda mais difícil de descrever porque Erik Prince voa sobre ele a menos de 200 pés. A traseira do avião – um pequeno CASA C-212 de fabricação espanhola – está aberta. A tripulação inicia uma contagem regressiva, Prince ajusta o cinto que o amarra ao avião e fica em posição. Ao ouvir o comando “agora!”, um jovem soldado do exército [G.I.] corta uma tira e Prince empurra um contêiner para fora do avião. Vê-se o paraquedas preto que se abre e o avião salta para a frente, empurrado pela diminuição do peso que carrega. A carga – alimentos e munição – cai dentro do perímetro demarcado de uma base operacional avançada [FOB - forward operating base] de um esquadrão de elite das Forças Especiais dos EUA.
  Cinco vezes por semana, o braço de aviação da Blackwater – uma empresa que leva o espantoso nome de Presidential Airways – voa nessas perigosas e baixas altitudes até os mais remotos postos norte-americanos no Afeganistão. Desde 2006, a empresa de Prince está encarregada de prestar esse “serviço chave” aos soldados norte-americanos, que implica milhares de viagens de entrega. A Blackwater também fornece serviços de segurança ao embaixador dos EUA, Karl Eikenberry, e sua equipe; e dá treinamento a unidades especiais da polícia do Afeganistão.
  De volta a terra firme, Prince, com um BlackBerry na cintura e uma 9 mm do outro lado, faz uma rápida visita de inspeção a uma das bases da Blackwater no nordeste do Afeganistão, mostrando alguns prédios recentemente atingidos por fogo de morteiros. Um avião sob controle remoto [drone] faz círculos no céu, as câmeras vasculhando os arredores. Prince escala uma torre de observação e examina um ponto, abaixo, onde dois de seus empregados quase foram mortos em julho, por uma bomba de fabricação caseira. “Sem contar os postos de controle de passagem de civis, essa é a base mais próxima da fronteira [do Paquistão]”, Sua voz adquire uma melodramática solenidade.  “Quem mais construiu um FOB ao longo da principal rota de infiltração do Talibã e tão perto da última localização conhecida de Osama bin Laden?”. Não chega a ter o apelo do “Para Aqaba!”, bradado por Lawrence da Arábia, mas dá para você ter uma imagem.

ASSASSINATOS

A Blackwater está no Afeganistão desde 2002. Naquele momento, o diretor executivo da CIA, A. B. “Buzzy” Krongard, respondendo às queixas de seus agentes, que estavam “muito preocupados porque os afegãos estão saltando por cima da cerca ou abrindo as portas”, alistou a empresa para dar proteção à base da Agência em Cabul. (Krongard, depois, serviria como conselheiro da direção da Blackwater até 2007. E seu irmão Howard “Cookie” Krongard – inspetor geral do Departamento de Estado – teve que se esforçar muito para comprovar sua absoluta separação relativamente aos negócios com a Blackwater no Afeganistão, depois que se revelou o envolvimento do irmão com aquela empresa. Buzzy, depois, se demitiu).
  À medida que crescia a confiança da CIA na Blackwater, aumentavam as responsabilidades da empresa, que passaram da proteção estática à segurança móvel – cobertura ao pessoal da Agência, sempre com medo de suicidas-bombas, emboscadas e bombas de fabricação caseira ao longo e às margens das estradas, em suas andanças pelo país. Mas, em 2005, a Blackwater, acostumada a guardar os agentes da CIA, começava a ficar um bocado parecida com a própria CIA.
  Enrique “Ric” Prado tornou-se empregado da Blackwater depois de trabalhar como chefe de operações do Centro de Contraterrorismo (CTC) da CIA. Pouco depois, o chefe de Prado, J. Cofer Black, diretor geral do CTC, também se mudou para a Blackwater. Foi seguido, depois, pelo superior dos dois, Rob Richer, segundo em comando de todas as operações clandestinas da CIA. Dos três, Cofer Black sempre foi o mais notório. Como Bob Woodward contou em seu livro “Bush at War”, no dia 13 de setembro de 2001, Black prometeu ao presidente Bush que a CIA deixaria os membros da Al-Qaeda “com moscas passeando nos buracos dos olhos”. Segundo Woodward, “Black ficou conhecido, no círculo íntimo de Bush, como ‘o cara das moscas nos buracos dos olhos’ [flies-on-the-eyeballs guy]”. Richer e Black rapidamente ajudaram a criar uma nova empresa, a Total Intelligence Solutions (que coleta dados para ajudar na avaliação de risco de negócios no exterior). Mas, em 2008, ambos deixaram a Blackwater, assim como, em 2010, o presidente da empresa, Gary Jackson, fez o mesmo.
  Durante todo esse tempo, Black e Richer, parceiros de Ric Prado, primeiro na CIA, depois como empregados da Blackwater, trabalharam em silêncio com Prince como seus vice-presidentes de “programas especiais”, para fornecer à CIA um serviço que todos os serviços de inteligência querem muito: a negativa plausível. Pouco depois do 11/9, o presidente Bush lançou uma ordem de “achar e matar” que deu carta branca à CIA para matar ou capturar membros da Al-Qaeda. (Por efeito de ordem presidencial do presidente Gerald Ford, desde 1976 os agentes da inteligência dos EUA eram proibidos, por lei, de organizar e executar assassinatos). Como experiente funcionário, Prado ajudou a implementar a ordem de Bush, selecionando uma equipe de “blue-badgers” [“faixas azuis”], como são conhecidos os agentes do governo. O serviço tinha três etapas: “achar”, “fixar” e “acabar”. “Achar” o alvo designado, “fixar” a rotina da pessoa e, se necessário, “acabar” com ela. Quando chegou a hora de treinar essa equipe, a CIA, dizem fontes internas, procurou Prince. Preocupados em não atrair excessiva atenção, a equipe não foi adestrada no centro de treinamento da empresa na Carolina do Norte, mas em uma propriedade particular de Prince, a uma hora de Washington, DC. A propriedade é semelhante a outras mansões de grandes proprietários rurais, com pastagens e criação de cavalos, mas com outras instalações menos tradicionais, como um stand coberto de treinamento de tiro. Mais uma vez, Prince inspirava-se no agente “Bill, o Selvagem”: “Os primeiros agentes do Office of Strategic Services (OSS) da II Guerra Mundial também foram treinados numa propriedade rural privada, no interior do país”.
  Entre os alvos das equipes, segundo uma fonte familiarizada com o programa, estava Mamoun Darkazanli, um financiador da Al-Qaeda que vivia em Hamburgo e estava há anos no radar da Agência por suas ligações com três dos sequestradores do 11/9 e com elementos condenados pelos atentados a bomba, em 1998, contra embaixadas dos EUA na África Oriental. A equipe da CIA supostamente trabalhou “no escuro”, no sentido de que a presença da equipe não foi notificada nem à própria estação da Agência [na Alemanha] – muito menos ao governo alemão. Eles, então, seguiram Darkazanli durante semanas, e trabalharam para montar a logística de onde e quando seria abatido. Outro alvo, diz a mesma fonte, foi A. Q. Khan, o cientista paquistanês [acusado de] partilhar know-how nuclear com o Irã, a Líbia e a Coreia do Norte. Supõe-se que a equipe da CIA o tenha rastreado em Dubai. Em ambos os casos, insiste a mesma fonte, as autoridades em Washington escolheram não apertar o gatilho, suspender a caçada e não autorizaram o assassinato. No entanto, a inclusão de Khan na lista de alvos selecionados sugere que o programa de assassinatos era mais amplo do que se suspeitava anteriormente. (Para Gimigliano, porta-voz da Agência, “a CIA não discutiu – ao contrário do que a mídia divulgou – o conteúdo e substância desses projetos, ou de projetos anteriores”).
  A fonte familiarizada com as missões Darkazanli e Khan não aceita o que têm dito agentes atuais e ex-agentes da CIA: “Eles têm dito que o programa de assassinatos não avançou porque os agentes não tinham capacitação ou porque houve falha de cobertura. Não é verdade. A operação esteve ativa por muito tempo, em vários lugares, sem jamais ser descoberta. O programa morreu por falta de vontade política”.
  Quando Prado deixou a CIA, em 2004, depois de um curto hiato, de fato levou o programa com ele [para a Blackwater]. Àquela altura, segundo fontes que conhecem o plano, Prince já estava ligado à Agência e os dois começaram a trabalhar na privatização do programa, mudando a composição da equipe, de faixas azuis para uma combinação de “faixas verdes” (empresas contratadas pela CIA) e empresas de países do Terceiro Mundo (que não sabiam da conexão com a CIA). Funcionários da Blackwater insistem que os recursos da empresa e a força-de-trabalho nunca foram diretamente utilizadas; essas iniciativas seriam de responsabilidade pessoal direta de Prince, por fora da contabilidade da Blackwater; a empresa, depois, reembolsava os gastos que houvesse. E que, apesar dos laços íntimos que os ligavam à CIA, nem Cofer Black nem Rob Richer tomaram parte.  Nas palavras de Prince: “Estávamos construindo uma capacidade unilateral e intransferível. Se desse errado, não esperávamos que o chefe da estação [da CIA], o embaixador ou seja lá quem for nos desse fuga”. Prince insiste que, se essa equipe tivesse realmente funcionado, a CIA teria pleno controle operacional. Mas não funcionou, devido ao que Prince chama de “osteoporose institucional”, e a segunda versão do programa de assassinatos perdeu força.
  Em algum momento, depois de 2006, a CIA tentaria reativar o programa, segundo uma fonte interna que conhece o plano em detalhes. “Cada um achou alguma razão para não participar”, diz a fonte. “Tiraram o corpo fora. As pessoas diziam aos coordenadores ‘tenho família, tenho outros compromissos’. Esta é a fodida [fucking] CIA. Estavam, supostamente, chefiando a luta contra a al-Qaeda, mas não se conseguia achar quem quisesse fazer a tarefa”. Outras fontes com conhecimento do programa são mais caridosas e questionam por que um funcionário direitista assinaria embaixo de um programa de assassinatos, quando seus colegas que pensaram ter cobertura legal para se engajar em outro esforço sensível, o programa de “interrogatórios com uso da força”, nas bases secretas da CIA em países estrangeiros, foram pegos num limbo legal.
  Os EUA e Erik Prince, ao que parece, demoraram demais para sair do negócio de assassinatos. Além dos aviões por controle remoto que voam, com auxílio da Blackwater, por cima da fronteira afegã-paquistanesa (o presidente Obama autorizou mais de três dúzias desses ataques), Prince reivindica que ele e uma equipe de cidadãos estrangeiros ajudaram a achar e fixar um alvo em outubro de 2008 e depois deixaram a etapa de “acabar” para outros. “Na Síria”, ele diz, “emitimos todos os sinais de inteligência para a geolocalização dos bandidos numa área muito impenetrável”. Em seguida, uma equipe das Forças Especiais dos EUA lançou um ataque de helicóptero para abater Abu Ghadiyah, um dirigente intermediário da Al-Qaeda. Ghadiyah, cujo nome real é Badran Turki Hishan Al-Mazidih, foi dado como morto, com seis outras pessoas – embora tenham surgido dúvidas sobre se Ghadiyah estava lá no dia do ataque, como foi detalhado numa recente reportagem de Reese Ehrlich e Peter Coyote, em “Vanity Fair”.
  E, até dois meses atrás [novembro de 2009], quando Prince diz que o governo Obama tirou o fio da tomada, ele continuava profundamente envolvido nas artes das trevas. Segundo fontes internas, Prince continuava a trabalhar em operações para reunir informações de inteligência, de um local secreto, nos EUA, coordenando de longe o movimento de espiões que trabalham infiltrados num dos países do chamado “Eixo do Mal”. Sua missão: confidencial.

RETIRADA

  Voando, ao retornar de Cabul, Prince requenta o assunto de quanto se sente exposto desde que a mídia revelou seu papel no programa de assassinatos. A tempestade, que começou em agosto, continuou a crescer e pode estar levando muitos dos que o manipularam a não saber com certeza se o próprio Prince não seria hoje mais uma debilidade do que um recurso. Ele diz que não pode entender porque encerrariam esforços e programas de alto risco e altos dividendos contra alguns dos mais implacáveis inimigos dos EUA, por medo de que seu envolvimento poderia acarretar um comprometimento, em vista do clima político.
  Ele é incrédulo em que os funcionários do governo dos EUA pareçam desejar, com efeito, tirar o ar daqueles programas. “Tenho, aberta e encobertamente, servido aos EUA desde que me alistei pela primeira vez nas Forças Armadas”, Prince observa. Depois de 12 anos construindo sua empresa, diz que quer entregá-la aos empregados e a um comitê de administração, e deixar de prestar serviços à Defesa. Há quem diga que está em curso uma luta interna pelo poder, entre os que querem definir o rumo do que possa ser uma Blackwater pós-Prince.
  Prince insiste: simplesmente, “estou farto”.
  No passado, Prince divertiu-se com a ideia de construir um navio – completo, com pessoal de segurança, médicos, helicópteros, remédios, alimentos e combustível – e estacioná-lo no litoral da África, para oferecer “ajuda e dentes” nos pontos mais difíceis do continente ou enfrentar os piratas da Somália. Chegou a pensar em criar uma brigada de rápido deslocamento, a ser alugada, sob pagamento, a governos estrangeiros.
  Por hora, contudo, Prince diz que tem planos muito mais modestos. “Vou ser professor de ginásio”, diz, sem piscar. “Posso ensinar história e economia. E sou treinador de luta livre. Por que não? Indiana Jones também foi professor”.

9 de setembro de 2010

Receio que estejamos no início de uma forte depressão

PAUL KRUGMAN *

As recessões são comuns, mas as depressões são raras. Até onde eu sei, apenas dois períodos da história econômica foram chamados na sua época de “depressões”: os anos de deflação e instabilidade após o Pânico de 1873 e os anos de desemprego em massa após a crise de 1929 a 1931.
  Nem a Longa Depressão do século 19 nem a Grande Depressão do século 20 foram períodos de declínio ininterrupto - pelo contrário, ambas tiveram momentos em que a economia cresceu.  Mas esses episódios de melhoria nunca foram suficientes para desfazer os danos do choque inicial e foram seguidos de recaídas.
Receio que estejamos nos primeiros estágios de uma terceira depressão. A probabilidade é que ela seja mais parecida com a Longa Depressão do que com a Grande Depressão. Mas o custo - para a economia mundial e, acima de tudo, para os milhões de vidas arruinadas pela falta de empregos - será ainda assim, imenso.
  E essa terceira depressão será resultado de um fracasso das políticas econômicas. Em todo o mundo - mais recentemente na desanimadora reunião do G-20 no último final de semana - os governos estão obcecados com a inflação, enquanto que a grande ameaça é a deflação, recomendando cortes de gastos, ao passo que o verdadeiro problema são os gastos inadequados.
  Em 2008 e 2009, parecia que havíamos aprendido com a história. Diferente de seus predecessores, que aumentaram as taxas de juros para enfrentar a crise financeira, os líderes atuais da Reserva Federal e do Banco Central Europeu cortaram radicalmente os juros e voltaram-se para os mercados de crédito.  Diferente dos governos do passado, que tentaram equilibrar os orçamentos para enfrentar a economia em declínio, os governos de hoje permitiram que os déficits aumentassem. E melhores políticas ajudaram o mundo a evitar o colapso total: Pode-se dizer que recessão resultante da crise financeira terminou no verão passado.
  Mas os historiadores nos dirão no futuro que esse não foi o fim da terceira depressão, da mesma forma que a melhora econômica em 1933 não foi o fim da Grande Depressão. Afinal de contas, o desemprego - especialmente o desemprego de longo prazo - mantém-se em níveis que seriam considerados catastróficos há alguns anos e não parecem estar a caminho do declínio. E tanto os Estados Unidos quando a Europa estão prestes a cair na armadilha deflacionária que atingiu o Japão.
  Perante perspectivas tão sombrias, esperávamos que nossos legisladores se dessem conta de que ainda não fizeram o suficiente para promover a recuperação. Mas não: Nos últimos meses, observou-se a volta de um comportamento espantosamente ortodoxo com relação a empréstimos e orçamentos equilibrados.
  Podemos observar uma volta mais evidente desse tipo de comportamento em discursos na Europa, onde oficiais parecem estar se inspirando em Herbert Hoover para compor sua retórica, incluindo a afirmação de que impostos mais altos e cortes de gastos irão de fato expandir a economia através da segurança comercial. Na prática, no entanto, os Estados Unidos não estão muito diferentes. A Reserva Federal parece saber dos riscos da deflação - mas não se propõe a fazer nada para mitigá-los. A administração Obama sabe dos perigos de uma austeridade fiscal prematura - mas, já que os republicanos e democratas conservadores se negam a autorizar um auxílio maior aos governos estaduais, essa austeridade é inevitável e se manifesta através de cortes de orçamento estadual e municipal.
  Por que então esse tropeço político? Os conservadores normalmente citam os problemas da Grécia e outros países europeus para justificar suas ações. É verdade também que os investidores de ações passaram a preferir os governos com déficits incontroláveis. Mas não há provas de que a austeridade fiscal repentina em face a uma economia em depressão ofereça alguma garantia a investidores. Muito pelo contrário: A Grécia optou pela austeridade severa e teve como resultado um aumento ainda maior da sua instabilidade; a Irlanda impôs cortes ferozes nos gastos públicos e foi tratada pelos mercados como um risco maior do que a Espanha, que até então havia sido mais relutante em aceitar a solução proposta pelos conservadores.
  É quase como se os mercados financeiros conseguissem entender o que os legisladores não conseguem: apesar de a responsabilidade fiscal de longo prazo ser importante, o corte repentino de gastos em uma depressão, que aumenta mais ainda essa depressão e precede a deflação, é também uma estratégia autodestrutiva.
  Por isso eu acho que a Grécia não é a culpada, nem a preferência realista por trocar empregos por déficits. Na realidade, tudo isso se resume a um conservadorismo que pouco tem a ver com análises racionais e cujo maior dogma é impor sofrimento ao povo para mostrar liderança em momentos de crise.
  E quem pagará o preço pelo triunfo desse conservadorismo? Dez milhões de trabalhadores desempregados, muitos deles, inclusive, que ficarão sem trabalho por anos ou até mesmo pelo resto da vida.
* Publicado no The New York Times.

2 de setembro de 2010

“Força do agronegócio barra a Reforma Agrária”

 

MST2 de setembro de 2010 às 17:12h

Por Raquel Júnia Da Página da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio / Fiocruz

O geógrafo Paulo Alentejano, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), conta nesta entrevista como o limite do tamanho da propriedade rural no Brasil pode reduzir a desigualdade no campo.

Ao contrário do que os opositores da medida fazem parecer, ele explica por que a proposta não é radical e como outros países já limitaram o tamanho das fazendas, inclusive implementando reformas agrárias. Segundo o pesquisador, nenhum projeto de reforma agrária foi colocado em prática em toda a história do Brasil.

Qual é o quadro brasileiro em termos de concentração fundiária?

A concentração da propriedade da terra no Brasil é algo não apenas persistente como crescente. O Brasil está entre os países com maior grau de concentração, seja pelos dados do IBGE, seja pelos dados do Incra.

O IBGE trabalha com a categoria de ‘estabelecimentos agropecuários’, que leva em consideração a unidade gestão, enquanto o Incra leva em consideração o documento de propriedade, trabalhando com imóveis.

Pelo IBGE, a comparação é que a parcela dos maiores estabelecimentos, com mais de mil hectares, que são menos de 1% do total, tem 44% das terras, enquanto os menores estabelecimentos, que são 47% do total, somam apenas 2,36%.

Ao se tomar como base os dados do Incra de imóveis rurais no cadastro de 2003, isso não é muito diferente – a grande maioria dos imóveis tem menos de 10 hectares, mas ocupam a menor área.. Pelo Incra os dados mostram que propriedades com menos de 10 hectares são 31,8% do total e ocupam só 1,8% das terras agrícolas Os imóveis com mais de cinco mil hectares são apenas 0,2% do total e tem 13% das terras.

E historicamente, como o país chegou a esta situação?

Esta história se inicia sem dúvida já com o processo da colonização, quando, através das chamadas Sesmarias, se distribui o controle da terra para poucos amigos do rei de Portugal. Eles passam a ter o direito de explorar a terra, mas também a responsabilidade sobre o controle político do território, em um sistema que articula economia e política. Há a exploração da terra, via exploração do trabalho escravo, e também controle político sobre o território, para que outras potências estrangeiras não viessem se apoderar disso.

Então, há já no início da colonização o estabelecimento do latifúndio, que se reafirma em 1850 com a Lei de Terras. A lei transforma a terra numa mercadoria e, ao dizer que as pessoas só podem ter acesso à terra na medida em que têm recursos para comprá-la, alija os escravos que estão em processo de libertação, os imigrantes que vão vir para substituir os escravos, os homens livres e pobres. Mantém-se o monopólio da terra e a concentração após a Lei de Terras e ao longo de toda a história do século XX. E agora, no século XXI, as sucessivas tentativas de realizar a reforma agrária no Brasil foram barradas pelo poder político do latifúndio.

Isso, inclusive, se acentua nos últimos anos em função do caráter da modernização que se deu na agricultura brasileira a partir dos anos 1970. Essa modernização vem reforçar a concentração, na medida em que aumenta a capacidade produtiva com a expulsão cada vez maior de trabalhadores da terra. Portanto, há uma persistência histórica da concentração da terra no Brasil que se refaz e se reforça até o momento pela incapacidade de os movimentos sociais transporem essas barreiras políticas e de modernização técnica.

Você considera que o Brasil em algum momento tentou ou colocou em prática algum projeto de reforma agrária?

O momento que chegou mais próximo disso foi antes do golpe [civil-militar] de 1964. Naquele momento existia uma mobilização muito forte no campo, as Ligas Camponesas, a União dos Trabalhadores da Agricultura, o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Máster), havia uma diversidade grande de movimentos sociais rurais naquele momento, com uma articulação importante naquela história. E havia também por parte do governo João Goulart uma aposta na possibilidade da reforma agrária como parte das reformas de base. Entretanto, as forças conservadoras mais uma vez acabaram por triunfar.

João Goulart anunciou em comício na Central do Brasil, no dia 13 de março de 1964, a desapropriação das terras localizadas nas imediações das rodovias e ferrovias federais. Menos de um mês depois houve o golpe militar, em 1º de abril, e uma das razões fundamentais foi justamente a reação à proposta de reforma agrária no Brasil.

De lá para cá isso se repetiu muitas vezes: quando há uma força maior dos movimentos, há regressão do processo pela reação conservadora. Isso aconteceu em 1964, aconteceu com a Nova República, quando Tancredo Neves e a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil construíram o primeiro plano nacional de reforma agrária e a UDR [União Democrática Ruralista] reagiu fortemente, esvaziando o plano, e, depois, na Constituição de 1988, quando a luta pela reforma agrária também foi esvaziada.

Imaginava-se que o governo Lula iria efetivar a reforma agrária, construiu-se a perspectiva do segundo plano nacional de reforma agrária e, mais uma vez, a força do agronegócio se contrapôs com a justificativa de que tem uma importância enorme para a balança comercial. E aí se desconstruiu novamente a possibilidade da reforma. Então, reafirmou-se a todo momento este esvaziamento da reforma agrária. Quando os movimentos colocam na pauta as forças conservadoras se rearticulam e impedem que ela se efetive.

E há experiências em outras partes do mundo que tenham implementado propostas de reforma agrária que deram certo?

Podemos falar isso em movimentos que foram conduzidos na lógica da modernização capitalista, como é o caso dos Estados Unidos, que impuseram o processo na Ásia no final da Segunda Guerra Mundial – inclusive estabelecendo limite para o tamanho da propriedade da terra no Japão, na Coréia do Sul e em Taiwan.

Na América Latina houve processos diferenciados e amplos de reforma agrária, alguns a partir da base, da mobilização popular – o caso do México é o mais emblemático, mas há também o da Nicarágua – e outras propostas de natureza reformista, como no Peru, no Chile ena Bolívia, em vários momentos históricos.

A reforma agrária surge no mundo como uma medida de desenvolvimento do capitalismo e em outros casos foi associada a processos revolucionários, que é o caso da União Soviética, da China, de Cuba e outras situações sui generis. Então, a reforma agrária é algo que ao longo dos últimos 200 anos ocorre muitas vezes, em muitos países, com muitos sentidos e situações diferenciadas.Não há uma regra única para esse processo.

A reforma agrária não é então algo necessariamente radical, como fazem parecer ser?

Não, em alguns casos ela foi exatamente um processo de modernização capitalista. Aliás, na década de 1960, o governo Kennedy, nos Estados Unidos, formula na chamada Aliança para o Progresso a ideia de que era preciso fazer reforma agrária na América Latina para conter processos mais amplos à semelhança do de Cuba.

Então, inclusive, há uma construção da reforma agrária como uma medida anti-revolucionária. No Brasil, nada disso se concretizou, nem sequer reformas agrárias tímidas pontuais, anti-socialistas ou anti-revolucionárias.

Na verdade sempre foram obstaculizadas pelas forças do latifúndio que não abrem mão do monopólio da terra. A terra tem se constituído como um bem econômico, que significa poder político e que dá acesso a fundos públicos, este é um outro elemento fundamental.

A terra no Brasil é um dos mecanismos de acesso a financiamento e isso é uma estratégia que faz com que grandes grupos econômicos sejam grandes proprietários de terra, embora não sejam exatamente grandes produtores.

Hoje no Pará, por exemplo, o grupo Oportunity do Daniel Dantas tem enormes extensões de terra para pretensos projetos agropecuários como lavagem de dinheiro, evasão de impostos e uma série de mecanismos que existem também do ponto de vista financeiro e que justificam o controle sobre a terra.

Essa nova configuração que você descreve com a presença de grandes corporações também proprietárias de terra muda a correlação de forças no campo?

Sem dúvida. Embora o latifúndio seja persistente no Brasil, ele tem caras diferentes ao longo do tempo. O latifúndio já foi a cara do velho coronel das oligarquias agrárias, do senhor de engenho, e hoje o latifúndio, embora exista também assim, tem fundamentalmente a cara de grandes empresas capitalistas, grandes monopólios financeiros, grandes empresas transnacionais e grandes grupos empresariais brasileiros também, que, inclusive, se utilizam de instrumentos como grilagens de terras para se apropriar das terras públicas, e se utilizam de trabalho escravo ainda hoje.

No ano passado, o Rio de Janeiro foi o estado com o maior índice de trabalho escravo no Brasil em função de casos identificados na usina Santa Cruz, que é arrendada pelo grupo J. Pessoa, o maior grupo usineiro do Brasil.

Então, não estamos falando de um coronel atrasado no sertão, mas de grandes grupos empresariais, que trabalham com trabalho escravo aqui e altíssima tecnologia lá. O capital hoje articula as formas mais desenvolvidas possíveis tecnologicamente com as formas mais arcaicas de exploração do trabalho, não há contradições desse ponto de vista.

Então, são interesses extremamente poderosos que existem hoje contra qualquer tipo de reforma agrária, e por que isso? Porque mesmo o agronegócio dito altamente produtivo necessita permanentemente de terras novas para sua expansão.

Até porque desgasta profundamente o solo e, desgastando o solo, precisa de novas terras para se expandir, e se não tiver estoque de terras improdutivas não tem para onde avançar e não tem com se recompor.

Por isso há uma necessidade desses setores, mesmo os ditos mais desenvolvidos da agricultura brasileira, de manterem estoques de terras paradas e situações arcaicas de produção. Por que os empresários não aceitam a atualização dos índices de produtividade para desapropriação de terras para reforma agrária, que são de 1975? Porque necessitam permanecer com estoque de terra parada para que ele possa lançar mão em algum momento.

Esta proposta de atualização dos índices de produtividade também foi bastante combatida. Como está esta discussão?

A lei agrária de 1993 estabelece que por decreto interministerial os índices serão atualizados de tempos em tempos. E quando a lei estipulou os índices, o fez com base em dados super atrasados, do censo de 1975.

Desde o primeiro governo Lula existe uma proposta de atualização dos índices de produtividade feita pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que está na mesa do gabinete civil da presidência para que seja assinado.

A proposta nunca foi efetivada porque tem que ser um decreto interministerial e tem que ter assinatura do MDA e também do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que é o ministério que representa os interesses do agronegócio, do latifúndio, da grande propriedade da terra no Brasil.

Os sucessivos ministros da agricultura sempre negaram acordo para atualização dos índices de produtividade e a força política deles sempre foi a bancada ruralista, que sempre disse que se houvesse atualização dos índices de produtividade o governo Lula perderia qualquer apoio deles.

Então, há um processo claro de pressão política da bancada ruralista, que beira a chantagem, para a não atualização dos índices de produtividade e o governo Lula sucumbiu à força política destes setores.

E essa proposta atualiza os índices com base em que dados?

Ela utiliza os Censos Agropecuários de 1995 – 1996, não chega nem a utilizar o de 2006, até porque a proposta foi feita antes de o Censo ser liberado, e utiliza também os estudos da Embrapa e uma série de estudos para fazer a atualização desses índices. Mesmo utilizando os dados da década de 1990, melhoraria substancialmente em relação aos índices de produtividade de 1975. De lá para cá, os índices médios de produtividade subiram substantivamente.

Para além desta discussão do limite e dos índices de produtividade, existe a proposta de um novo modelo para a agricultura brasileira levantado pelos movimentos sociais do campo. Quais são as bases deste modelo?

A proposta do movimento e de setores que trabalham próximos aos movimentos do campo vai em quatro direções fundamentais.

A primeira é a necessidade de romper com a histórica concentração fundiária, porque isso produz injustiça e desigualdade.

A segunda é chamar atenção para o processo recente de internacionalização que a agricultura brasileira vem sofrendo, que se expressa também na compra de terras pelos estrangeiros. Parece que agora o governo tentará alguma medida de restrição a isso, mas problema não se resume à compra de terras.

Essa questão passa, por exemplo, pela crescente dominação das empresas transnacionais sobre a agricultura brasileira, impondo um aporte tecnológico com sementes, agroquímicos e a própria compra da produção agropecuária que cada vez mais é controlada pelas grandes empresas internacionais.

A terceira crítica é que, em função do latifúndio, há uma tendência cada vez maior de que se privilegie no Brasil a produção de matérias primas industriais e produtos para exportação, que interessam aos grandes grupos estrangeiros, e não a alimentação da população brasileira.

Cada vez mais tem se ampliado no Brasil a produção de soja, de milho, de cana de açúcar, monoculturas de eucalipto e de pinho para produzir celulose, contra a área destinada à produção de arroz, de feijão, dos alimentos básicos.

É um modelo produtivo que atende a interesses externos e não àquilo que seria fundamental para ampliar a segurança alimentar da população brasileira. E o quarto elemento fundamental é que este modelo agrário vem acompanhado de uma lógica da violência, que expulsa trabalhadores do campo de forma violenta, realiza o trabalho escravoe explora altamente o trabalho daqueles poucos que sobram no campo.

Um exemplo é a situação dos cortadores de cana que, para competir com as colheitadeiras. têm que aumentar cada vez mais a produtividade do seu trabalho, e isso implica jornadas cada vez mais exaustivas e problemas de saúde cada vez mais danosos aos trabalhadores.

O outro elemento que também é conseqüência deste modelo é a devastação ambiental, o avanço sobre as florestas – está aí a pressão toda para se mudar o Código Florestal para poder avançar ainda mais este processo de desmatamento. E aliado a isso há também um crescente uso de agroquímicos que fazem do Brasil hoje o campeão no uso de agrotóxicos, com um grau cada vez mais intenso de contaminação dos alimentos que ingerimos.

É nesse sentido que os movimentos tem se contraposto a isso com o limite da propriedade da terra, a proposta da agroecologia como base de uma produção que ao mesmo tempo evite a devastação e conviva com os ecossistemas de forma mais equilibrada, e, sobretudo, não use essa enormidade de agrotóxicos que vem sendo utilizada.

Esta proposta se baseia também em relações de trabalho muito mais justas do que as que estão colocadas atualmente.O conjunto desaas coisas é que está colocado como o contraponto da articulação.

A crítica a esse modelo agrário dominante se rebate na defesa de um outro modelo que embasaria a proposta de reforma agrária, com base na democratização das condições de vida no campo e na rejeição desaas características que estão postas com este modelo – violência, superexploração do trabalho e devastação ambiental.

De acordo com a marcação do Incra, propriedades com mais de 15 módulos fiscais são consideradas grandes. Então, mesmo com a limitação em 35 módulos fiscais proposta pelo plebiscito, ainda teremos grandes propriedades no país. O que precisa ser esclarecido nesse sentido à população?

Pela legislação brasileira, imóveis de um a quatro módulos fiscais são considerados como pequena propriedade, de cinco a 15 são média propriedade e, acima de 15, grande propriedade. E o módulo varia de região para região de acordo com qualidade do solo, clima, infraestrutura, proximidade dos mercados.

Tudo isso influi na definição do módulo fiscal de tal maneira que há módulos de 5 hectares, próximos aos grandes centros, até 110 hectares, que é o maior que temos no Brasil.

Com a proposta do limite em 35 módulos fiscais, o tamanho variará de 175 hectares, próximo aos grandes centros, o que é muito, até 3.500 hectares em áreas mais distantes como a Amazônia. Veja que a proposta não está propondo acabar com a grande propriedade, que é acima de 15 módulos fiscais, está apenas acabando com as gigantescas – trata-se de reduzir a desigualdade e não acabar com ela.

Então, não é no nível de radicalidade que alguns países fizeram. Há países no mundo que estabeleceram limites muito mais restritos para a propriedade da terra, como no Japão, onde o limite é de 12 hectares, ou na Coréia do Sul, que é de três hectares.

O limite que estamos propondo para o Brasil chega a 3.500 hectares e isso significa que propriedades do tamanho de aproximadamente 3.500 campos de futebol poderiam ser permitidas no país, variando de região para região.

É uma proposta extremamente eficaz porque, atingindo apenas 50 mil imóveis, o que corresponde a 2% dos imóveis rurais do Brasil, seria possível obter 200 milhões de hectares para a reforma agrária. Isso corresponde a quase 40% do total da área dos imóveis do Brasil.

Portanto, atingindo muito poucos, permitiria-se um avanço muito grande da reforma agrária, beneficiando muitas populações do campo e da cidade. É uma medida com impacto extremamente positivo do ponto de vista social no Brasil.

Existe uma dimensão da demanda por terra no país?

Existem várias projeções em relação a isso. Há aquelas que trabalham com número de famílias acampadas, que seria a demanda mais direta pela terra, cuja estimativa é de 150 a 200 mil famílias acampadas.

Tem uma estimativa que toma como base uma proposta do governo Fernando Henrique, de cadastro de interessados via correio, que chegou a 800 mil famílias cadastradas. E há dados do Censo Agropecuário que apontam os que seriam os assalariados em condição precária no campo: os arrendatários, parceiros, de forma geral, os trabalhadores rurais sem terra – que chegariam a quatro milhões de famílias aproximadamente.

Se agregarmos isso ainda a milhões de famílias que foram expulsas do campo e vivem precariamente nas cidades, e algumas delas podem ter interesse em voltar para a terra, isso poderia chegar a 10 milhões de famílias. Há variadas possibilidades de mensurar, desde a forma mais direta até a mais indireta. E de fato a medida poderia resolver tranqüilamente essa demanda.

Neste sentido, o plebiscito é muito importante como instrumento de mobilização, de conscientização da sociedade em relação aos seus problemas, assim como os outros plebiscitos populares, como o da Alca, o da Vale e o da Dívida Externa.

O objetivo, sobretudo, é provocar o debate na sociedade sobre a importância destas questões. E neste caso, a importância fundamental que tem a reforma agrária para o campo e para a cidade, para transformar esta realidade brasileira.

O plebiscito tem dois objetivos fundamentais: o primeiro é o de colocar o debate para a sociedade, e o segundo é, através do número de votos que se obtiver e das assinaturas que irá se recolher neste processo, poder impulsionar a proposta de emenda constitucional que visa a estabelecer efetivamente o limite para o tamanho da propriedade no Brasil.

Não temos ilusão de que isto será uma batalha fácil, pelo contrário, mas é através do plebiscito que se coloca isso mais amplamente para a sociedade, o que pode vir a gerar a pressão popular necessária para que isso possa acontecer. De alguma forma o plebiscito da Alca teve esse efeito, pelo menos tensionou o governo brasileiro para a questão e demonstrou que havia uma quantidade expressiva de brasileiros que rejeitava a proposta da Alca.

 

http://www.cartacapital.com.br/sociedade/forca-do-agronegocio-barra-a-reforma-agraria

1 de setembro de 2010

A erosão da classe média americana

 

Muitos americanos estão começando a perceber que, para eles, o Sonho Americano ultimamente mais parece um pesadelo. Eles enfrentam a realidade amarga de cada vez menos empregos, décadas de salários estagnados e aumentos dramáticos na desigualdade. Apenas nos últimos meses – à medida que a economia crescia, mas sem o retorno dos empregos, à medida que os lucros voltavam, mas os números de pobreza aumentavam semanalmente – o país parece ter reconhecido que está lutando com uma crise estrutural profunda, que se desenvolveu por anos. Como escreve o “Washington Post”, a crise financeira foi apenas o último passo – para pior

    THOMAS SCHULZ GEORGE E KHOURI ANDOLFATO *

Ventura é uma pequena cidade na costa do Pacífico, a cerca de uma hora de carro ao norte de Los Angeles. Casas de luxo com vista para o oceano pontilham as encostas e as praias são populares entre os surfistas. Ventura é a Califórnia da imaginação das pessoas. “É um lugar abastado”, diz o capitão William Finley. “Mas cerca de 20% da cidade corre o risco de virar sem-teto.” Finley comanda uma divisão local do Exército da Salvação.
Em meados do ano passado, Ventura lançou um programa piloto, administrado por Finley, que permite que pessoas durmam em seus carros dentro dos limites da cidade. Isso normalmente é ilegal, tanto em Ventura quanto no restante do país, onde moradores e autoridades locais temem ver vans em estado precário, cheias de trabalhadores migrantes mexicanos, estacionadas em ruas residenciais.
  Mas no início do ano passado, as pessoas em Ventura perceberam que os carros estacionados em frente de suas casas à noite não eram veículos velhos, mas peruas e utilitários esportivos bem cuidados. E as pessoas que dormiam nelas não eram trabalhadores rurais ou moradores de rua comuns, mas seus antigos vizinhos.

DÍVIDA CRESCENTE

  Finley também notou uma mudança. De repente, o dobro de pessoas estava fazendo uso do programa de refeições gratuitas de sua organização de serviços sociais, e algumas até mesmo chegavam dirigindo BMWs – aparentemente relutantes em abrir mão de seus carros caros, que os recordavam de dias melhores.
  O capitão os chama de “os novos pobres”. “Esta é uma categoria diferente de pessoas que estamos vendo”, ele diz. “São pessoas que nunca imaginaram que algum dia seria sem-teto.” Eram pessoas que tinham dinheiro suficiente – em alguns casos muito dinheiro– até recentemente.
  “A imagem do que é uma pessoa pobre atualmente é diferente. Quando eu cresci pobre, e éramos bem pobres, nós andávamos em um carro com 10 anos de idade e com alguns amassados. Era o único carro da família e vivíamos de alimentos distribuídos por caridades”, diz Finley. “No passado, você se esforçava para sair da pobreza e então melhorava de vida.”

DIREÇÃO OPOSTA

  Era o modo de vida americano, um caminho trilhado por milhões. “Hoje, a imagem é a de carros último modelo, que a certa altura custaram 40 mil, 50 mil (dólares), mas essas pessoas agora não sabem mais o que fazer, e estão vivendo de comida doada por organizações de caridade. E para muitas delas, é preciso um esforço imenso para engolir o orgulho”, diz Finley.
  Hoje, o modo de vida americano caminha na direção oposta: para baixo.
  Por algum tempo, os Estados Unidos pareciam ter saído relativamente ilesos da pior crise econômica em décadas – com vigor e energia renovados – como fizeram após crises do passado.
  O governo estava anunciando novos números de crescimento econômico já no início do último trimestre do ano passado, muito mais cedo do que o esperado. Os bancos, moribundos até recentemente, voltaram a ganhar bilhões. Empresas de todo o país estão anunciando forte crescimento e o mercado de ações quase retornou aos níveis pré-crise. Até mesmo o número de bilionários cresceu, em bons 17%, em 2009.
  Há duas semanas, o fundador da Microsoft, Bill Gates, e 40 outros bilionários prometeram doar pelo menos metade de suas fortunas para filantropia, seja ainda em vida ou após a morte. Os Estados Unidos são um país tão abençoado com riqueza que pode arcar em doar bilhões, assim fácil?

RESSENTIMENTO

  A ação de Gates poderia também ser interpretada como uma campanha de relações públicas, em um país onde os super-ricos sentem que apesar de estarem lucrando com a crise, como seria de se esperar, o número de pessoas afetadas de forma adversa por ela cresceu enormemente. Eles também sentem que há um crescente ressentimento na sociedade americana contra aqueles no topo.
  Para as pessoas nas faixas de renda mais baixas, a recuperação já parece estar falhando. Os especialistas temem que a economia americana possa permanecer fraca por ainda muitos anos. E apesar dos muitos programas assistenciais do governo, a pequena dose de esperança que proporcionam ainda precisa ser sentida pelo público em geral. Na verdade, para muitas pessoas as coisas ainda continuam piorando dramaticamente.
  Segundo uma recente pesquisa de opinião, 70% dos americanos acreditam que a recessão ainda continua plenamente. E desta vez não são apenas os pobres que foram atingidos de forma especialmente dura, como geralmente são durante recessões.
  Desta vez a recessão também está afetando pessoas com alta escolaridade e que ganhavam bem até recentemente. Essas pessoas, que se consideram solidamente como sendo de classe média, agora se sentem mais ameaçadas do que nunca na história do país. Quatro entre 10 americanos que se consideram como parte da classe média acreditam que não conseguirão manter seu status social.

O DESEMPREGO PERSISTE

  Em uma recente história de capa intitulada “Adeus, Classe Média”, o “New York Post” apresentou aos seus leitores “25 estatísticas que provam que a classe média está sendo sistematicamente erradicada da existência na América”. Na semana passada, a importante colunista online Arianna Huffington emitiu um alerta quase apocalíptico de que “a América corre o risco de se transformar em um país de Terceiro Mundo”.
  De fato, os Estados Unidos, após as crises imobiliária, financeira, econômica e agora da dívida, que ainda não foram superadas, corre o risco de uma Era Glacial social mais severa do que qualquer coisa que o país viu desde a Grande Depressão.
  Mais de um ano após o fim oficial da recessão, a taxa de desemprego geral permanece consistentemente acima de 9,5%.  Mas esse é apenas o número oficial. Quando corrigido para incluir as pessoas que já desistiram de procurar emprego ou mal sobrevivem com as poucas centenas de dólares que ganham em empregos de meio expediente e estão usando suas economias, a taxa real de desemprego sobe para mais de 17%.
  Em seu relatório anual atual, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos nota que a “insegurança alimentar” está aumentando, e que 50 milhões de americanos não tiveram condições de comprar comida suficiente para permanecerem com saúde em algum momento do ano passado. Um entre cada oito adultos americanos e uma entre quatro crianças atualmente sobrevive de cupons de alimento do governo. São números inacreditáveis para o país mais rico do mundo.
  Ainda mais perturbador é o fato dos Estados Unidos, que sempre foram caracterizados por sua crença inabalável no Sonho Americano e em sua convicção de que qualquer um, mesmo aquele na mais baixa das condições, pode ascender ao topo, estarem começando a perder seu famoso otimismo. Segundo dados recentes, uma minoria significativa de cidadãos americanos atualmente acredita que seus filhos estarão em situação pior do que eles.
  Muitos americanos estão começando a perceber que, para eles, o Sonho Americano ultimamente mais parece um pesadelo. Eles enfrentam a realidade amarga de cada vez menos empregos, décadas de salários estagnados e aumentos dramáticos na desigualdade. Apenas nos últimos meses – à medida que a economia crescia, mas sem o retorno dos empregos, à medida que os lucros voltavam, mas os números de pobreza aumentavam semanalmente – o país parece ter reconhecido que está lutando com uma crise estrutural profunda, que se desenvolveu por anos.  Como escreve o “Washington Post”, a crise financeira foi apenas o último passo – para pior.

PARA ONDE FOI TODO O DINHEIRO?

  O boom em ações e imóveis, o endividamento louco do país e seu consumo excessivo por muito tempo mascararam o fato de que a grande maioria dos americanos não se beneficiou quase nada com os 30 anos de crescimento econômico. Em 1978, a renda per capita média para os homens nos Estados Unidos era de US$ 45.879. O mesmo número para 2007, corrigido pela inflação, era de US$ 45.113.
  Para onde foi todo o dinheiro? Todos os enormes ganhos de mercado e lucros corporativos, os lucros com o boom dos mercados financeiros e o aumento de 110% no produto interno bruto nos últimos 30 anos? Eles foram para aqueles que sempre tiveram mais do que o suficiente.
  Enquanto 90% dos americanos viram ganhos apenas modestos em suas rendas desde 1973, as rendas quase triplicaram para as pessoas no topo da pirâmide. Em 1979, um terço dos lucros produzidos pelo país foi para o 1% mais rico da sociedade americana. Hoje são quase 60%. Em 1950, um presidente-executivo corporativo ganhava 30 vezes mais que um trabalhador comum. Hoje ele ganha 300 vezes mais. E hoje, 1% dos americanos é dono de 37% do total da riqueza nacional.
  A desigualdade de renda nos Estados Unidos é muito maior hoje do que desde os anos 20, exceto que até agora quase ninguém se importava.

POUCA CHANCE DO SONHO AMERICANO

  Nos Estados Unidos, o livre mercado é rei e as pessoas de baixa renda têm apenas a si mesmas para culpar. Aqueles que ganham muito dinheiro são aplaudidos – e copiados. O único problema é que os americanos há muito ignoram o fato de que o Sonho Americano estava se tornando uma realidade para cada vez menos pessoas.
  Estatisticamente, os americanos mais pobres têm uma chance de 4% de ingressarem na classe média alta – um número menor do que em quase metade dos países industrializados.
  Até o momento, os políticos fracassaram em apresentar soluções para a crescente crise social. Washington ainda está aguardando por empregos que não estão aparecendo. O presidente Barack Obama e seu governo parecem estar depositando suas esperanças na noção de que os americanos no final se reerguerão por meio de iniciativa própria – preferivelmente fazendo o mesmo que sempre fizeram: consumindo. O consumo doméstico é responsável por dois terços do produto econômico americano.
  Mas apesar do presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano), Ben Bernanke, continuar injetando dinheiro no mercado, e apesar do déficit do governo já ter atingido o nível vertiginoso de US$ 1,4 trilhão, esses esforços permanecem malsucedidos.
  “As luzes estão apagando por toda a América”, escreveu na semana passada o ganhador do Nobel de economia, Paul Krugman, descrevendo comunidades que nem mais conseguem arcar com a despesa de manter suas ruas.
  O problema é que muitos americanos não podem mais gastar dinheiro em produtos de consumo, porque eles não têm economias. Em alguns casos, suas casas perderam metade de seu valor. Eles não mais se qualificam a empréstimos a juros baixos.   Eles estão ganhando menos do que antes ou estão desempregados. Isto, por sua vez, reduz ou elimina sua capacidade de pagar impostos.

APAGANDO AS LUZES

  Como resultado, muitos governos estaduais e prefeituras estão com enormes déficits orçamentários. No Havaí, por exemplo, as escolas estão fechando em algumas sextas-feiras para economizar dinheiro do Estado. Um condado na Geórgia eliminou todos os serviços públicos de ônibus. Colorado Springs, uma cidade de 380 mil habitantes, desligou um terço de seus postes de iluminação para economizar eletricidade.
  Há muitas discrepâncias nos Estados Unidos após a crise financeira. De um lado, o Fed está imprimindo dinheiro constantemente e o governo gastou US$ 182 bilhões para resgatar uma só empresa, a seguradora AIG. Por outro, as luzes estão de fato apagando em algumas áreas, porque Washington, citando a necessidade de reduzir gastos, não está disposto a fornecer ajuda financeira aos governos locais. “A América está atualmente na estrada não pavimentada, sem luz, para lugar nenhum”, alerta o economista Krugman.
  Chanelle Sabedra já está nessa estrada. Ela e seu marido dormiram em seu carro por três semanas. “Nós nunca imaginávamos que isso aconteceria, nunca”, diz Sabedra. Ela começa a chorar. “Eu sou uma adulta, eu posso cuidar de mim mesma de uma forma ou de outra, e meu marido também, mas meus filhos são pequenos demais para passar por essas coisas.” Sem condições de continuar pagando o aluguel, os Sabedra foram despejados de sua casa em agosto.
  Amigos e parentes tinham poucos recursos para ajudá-los. Agora eles vivem em um quarto no abrigo de moradores de rua do Exército da Salvação, no centro de Ventura, que é dirigido pelo capitão Finley.
  A queda repentina para moradores de rua é uma realidade difícil de entender, dada as imagens dos Estados Unidos que estamos acostumados a ver nas séries de televisão e filmes. Elas sempre descrevem lares com jardins bem cuidados e dois carros na garagem, com cestas de basquete penduradas sobre a entrada.   Essa América ainda existe, mas está encolhendo. E frequentemente aqueles que estão conseguindo manter a ilusão viva têm dificuldade para fazê-lo.
  Os americanos estão lutando com um aumento do custo de vida nos últimos 20 anos. No início da década, as famílias já estavam pagando o dobro pelos planos de saúde e hipotecas do que a geração anterior.
  “Para lidar, milhões de famílias colocaram os dois pais na força de trabalho”, diz a professora de Harvard, Elizabeth Warren, que foi nomeada pelo presidente Obama para presidir o painel do Congresso para supervisão do programa do governo de resgate aos bancos. Segundo Warren, a família média gastou toda sua renda e gastou todas suas economias “apenas para se manter mais um pouco à tona”.
  Por carecerem de economias, os americanos começaram a tomar empréstimos para cobrir todas as suas outras despesas, incluindo educação, saúde e consumo. A dívida do consumidor americano atualmente totaliza cerca de US$ 13,5 trilhões.
  Muitas pessoas correm o risco de sufocar sob o peso de sua dívida. Aproximadamente 61% dos americanos não têm reservas financeiras e estão vivendo de contracheque a contracheque.   Basta uma única conta hospitalar para levar à ruína financeira.
  O marido de Chanelle Sabedra encontrou outro emprego, desta vez como funcionário de depósito de uma empresa que produz turbinas para aviões. Mas ele não ganha o suficiente para tirar sua família do abrigo de moradores de rua. “Eu ainda não consegui um novo emprego”, diz Sabedra. O emprego de seu marido não paga o suficiente e o casal agora ingressou nas fileiras de trabalhadores pobres, para quem até dois empregos mal remunerados são insuficientes para alimentar suas famílias. “Nós precisamos de uma segunda renda”, diz Sabedra. “Só a creche do bebê custa US$ 600 por mês por meio dia.”
  Nos Estados Unidos pré-recessão, ela e seu marido tinham dois empregos cada para arcar com as despesas. Eles trabalhavam como caixas no Wal-Mart durante o dia e fritavam hambúrgueres no McDonalds ao anoitecer, além de que às vezes passavam metade da noite trabalhando como vigias noturnos ou realizando a limpeza de prédios. Todos eram empregos mal remunerados, longe de serem carreiras, mas a renda somada bastava para manter a família à tona. Nos Estados Unidos pré-recessão, a vida não era luxuosa para Chanelle Sabedra, mas dava para levar se eles estivessem dispostos a trabalhar arduamente e sacrificar o suficiente para permanecer à tona.
  Que tipo de emprego ela está procurando agora? “Por qualquer coisa. Em geral estou procurando no varejo, qualquer coisa para começar, mas no momento não há nada”, diz Sabedra.
* Publicado na revista Der Spiegel. 24/08/2010

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