24 de novembro de 2008

Negro ganha a metade que um não-negro

 

RAQUEL MALDONADO

20-11-2008

Na semana em que o Brasil relembra o assassinado de Zumbi dos Palmares, o máximo símbolo da resistência negra à escravidão no país, e que se celebra o Dia da Consciência Negra, uma pesquisa aponta desigualdades entre os salários dos trabalhadores brasileiros negros e não- negros.

De acordo com a pesquisa do Seade/Dieese, realizada na Grande São Paulo, a região mais rica do país, a renda de um trabalhador negro é metade da de um não-negro. Segundo os dados, enquanto o rendimento médio do negro é de R$ 4,36 por hora, o não-negro recebe R$ 7,98.

Para José Vicente, presidente da ONG Afrobras e reitor da Unipalmares (Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares), esse tipo de pesquisa serve para chamar a atenção para o fato de que ainda existe no Brasil uma desigualdade racial muito grande.

"O negro no Brasil não consegue encontrar espaços sociais de prestígio. Não há negros nas universidades, não há professores negros nas universidades, eles não estão no poder judiciário, no senado ou na câmara dos deputados. Não há negros na comunicação social. Nas novelas os negros também não aparecem muito. O que existe no Brasil é uma verdadeira invisibilidade do negro no espaço social", lamenta Vicente.

Educação

Apesar de que uma das principais causas apontadas por especialistas para explicar esta desigualdade na renda seja o menor acesso à educação, a pesquisa indica que, quanto maior o nível de estudos, maiores são as disparidades. Segundo o documento, enquanto a diferença entre a renda dos que não terminaram o ensino fundamental é de 20%, entre os que possuem o ensino superior completo o índice chega a 40%.

"O problema não está só na dificuldade que um negro tem para aceder ao mercado de trabalho, pois uma vez inserido neste mercado, as dificuldades continuam. Muitas vezes, ainda tendo as mesmas qualidades e as mesmas capacidades de um não-negro, seu salário é 50% menor", complementa Vicente.

Segundo o reitor, o que o Brasil precisa é de um grande movimento social para impulsionar o combate à discriminação racial, uma vez que essa questão não é um problema só do negro, mas, sim, de todos os brasileiros.

"Temos que contar com o apoio de todos para criar uma onda positiva no sentido de compreender o valor do respeito à diversidade e do respeito à tolerância. E fazer que estes sejam os valores prestigiados, incentivados e praticados tanto pelo governo quanto por toda sociedade. Temos que fazer que a história do negro e a história da África sejam aprendidas para que se crie uma identidade histórica, se eleve a auto-estima e também para difundir qual foi a contribuição do negro na construção do Brasil".

Estados Unidos
Vicente também opina que o Brasil deveria se espelhar em outros países na busca por uma melhor integração racial. "A vitória de Barack Obama já fez o Brasil sentar no divã. O Brasil vai ter que responder a si mesmo como um país que teve uma segregação racial oficial como a que tiveram os Estados Unidos tem hoje, depois de só 50 anos, um negro como presidente da República e nós, que nos orgulhamos de ser uma democracia racial, temos negros ganhando quase 60% menos que um trabalhador branco?".

11 de novembro de 2008

Por que a América não dará um giro à esquerda

PAUL HARRIS

 

A eleição de Barack Obama como o 44º Presidente dos EUA – e seu primeiro líder negro – tem sido celebrada como uma revolução e uma transformação. A ala direita dos Republicanos teme que seu país esteja aderindo ao presidente mais radical desde Roosevelt. Mas a análise dos votos e da própria personalidade de Obama revela muito menos mudança do que se está pensando.

Paul Harris - The Guardian

Data: 10/11/2008

Teve certamente a aparência de uma revolução. Em todos os recantos do país, partidários republicanos foram expulsos de seus postos. Estados que ao longo de uma geração não tinham votado pelos democratas tornaram-se azuis. De cidade em cidade, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas. Nos portões da Casa Branca, uma multidão se reunia e gritava: “Obama! Obama!”.
Agora, enquanto a América encara o fato de que Barack Obama será seu próximo presidente, muitos estão se perguntando se as mudanças políticas terão a mesma dimensão que a dessa campanha política. Alguns estão falando num novo New Deal. Eles vêem uma oportunidade de os democratas transformarem a América. Eles calculam uma hegemonia democrata por no mínimo uma década. Isso, sinceramente, tem mais com o novo do que com o velho.
Os números frios parecem reforçar esse argumento. Obama foi o primeiro democrata, desde 1976, a vencer com mais de 50% dos votos. Ele trouxe os democratas de volta ao poder no Sul Profundo, no Meio-Oeste e nas Montanhas Rochosas. Os Democratas são, de novo, uma parte do todo do país. Os republicanos parecem uns bundões.
Durante a campanha, a máquina republicana de ataque chamou Obama de marxista e socialista. Ele era um democrata tax-and-spend (1); o mais liberal dos políticos do Senado; um radical perigoso. E ainda assim a América votou nele. E não apenas isso, eles dobraram as esquinas aos montes e esperaram horas nas filas para eleger o primeiro Presidente negro. “Essa é uma mudança fundamental. Era totalmente imprevisível até há um ano atrás”, disse David Peritz, um cientista político do Sarah Lawrence College, de Nova York.
Fez a América liberal lamber os beiços. Obama usou o slogan de uma só palavra – mudança – e essa mudança é o que seus apoiadores querem. Alguns ativistas vêem uma chance de transformarem a América do mesmo modo que o fez Franklin Roosevelt. Controlando todos os níveis do governo, Obama pode redesenhar uma nação e os republicanos podem fazer pouco para interditar isso. Essa parece uma visão sedutora. Mas é real?
A história da esquerda norte-americana não tem sido uma história feliz. Parece que o país tem um conservadorismo inato que faz com que os políticos de esquerda sofram. Ainda assim Obama já começou a tarefa de preparação para governar. Ele está reunindo seu time e estabelecendo metas. A propaganda e os sonhos da campanha acabaram. Agora a América quer saber se a revolução de Obama é um artigo genuíno. Em breve saberá.
Às vezes, os momentos mais eloquentes de uma campanha aparecem nos detalhes esquecidos. Lá em janeiro, Obama encontrou editores de um jornal de Nevada, o Reno Gazette-Journal. Ele os surpreendeu elogiando o presidente Ronald Reagan, não apenas por suas políticas, como por sua habilidade para mudar a América. “Ele estabeleceu uma marca fundamentalmente diferente, porque o país estava preparado para isso.”, disse Obama. Os comentários causaram um breve tumulto. Hillary Clinton atacou Obama como se este tivesse reivindicado o legado de direita de Reagan. Então, isso desapareceu de vista.
Até agora. No rastro da sua vitória eleitoral na semana passada, esses detalhes puderam ser vistos sob nova luz. Muitos democratas estão esperando que Obama possa ser uma versão de esquerda de Reagan. Ele pode mudar a América por uma geração. O reaganismo, afinal de contas, dominou a vida política americana de 1980 até a semana passada. Todos os políticos depois dele, inclusive Bill Clinton, tiveram de ser pró-mercado, pelo corte de impostos, pró-guerra e do campo anti-governamental que Reagan criou. Agora, muitos liberais dizem que Obama tem o mandato para fazer a mesma coisa. Mas ao contrário. “Há muita gente falando em Washington sobre o fim da era Reagan”, disse John Fortier, um pesquisador visitante no conservador American Enterprise Institute.
Obama construiu uma grande e viável coalizão de apoio, composta de universitários brancos, negros e hispânicos e de jovens eleitores. Essa coalizão impulsionou o partido para fazer estados como Ohio, Iowa e Florida mudarem. Ela tornou estados vermelhos como Indiana, Colorado, Novo Mexico, Nevada, Virginia e Carolina do Norte em azuis. Obteve grandes avanços no Congresso, dando a Obama o controle sobre o governo. “Ele claramente tem um mandato. O poder está lá. A questão agora é quando ele fala que traz mudanças. O que ele quer dizer?”, disse David Frum, um quadro republicano e ex-assessor do Presidente George W. Bush.
Essa é a questão que está na cabeça de todo mundo. Durante a campanha a agenda era ambiciosa, potencialmente transformadora. No Iraque, Obama prometeu trazer as tropas americanas de volta para casa, talvez em 16 meses. Ele vai conversar com líderes de países como Irã, Cuba e Coréia do Norte. Ele prometeu uma maciça ampliação do serviço de saúde. Ele quer cortar impostos da classe média e aumentar os da classe alta, revertendo a tendência dos anos Bush.
Ele quer uma expansão maciça da indústria verde e de energia alternativa. Quer fazer com que serviços nas Forças Armadas, escolas e no exterior sejam trocados em créditos para pagar a universidade. A tudo isso seria acrescida a mudança mais fundamental de todas: trazer o governo de volta para a vida das pessoas.
Mas Obama tem mais do que influência política e idéias de esquerda. Sua campanha não foi comum. Foi um movimento de massa na idade da tecnologia. A campanha de Obama atraiu mais de 3,1 milhões de doadores e voluntários via internet. Eles existem como ativistas potenciais em todos os distritos congressuais no país, prontos para agitar e fazer lobby e campanha para a agenda de Obama. Essa é uma força que nenhum outro político americano jamais teve, antes; uma militância massiva online. Num e-mail enviado momentos antes ele fazer seu discurso da vitória, na última terça-feira, Obama disse-lhes para se prepararem: “Temos muito o que fazer para trazer nosso país de volta aos trilhos e em breve entrarei em contato para tratar do que vem depois”, ele escreveu.
Essa perspectiva amedronta alguns americanos. Literalmente. No Bar Madison, no subúrbio de Beaumont, Texas, o partido republicano local na semana passada assistiu ao desenrolar da vitória de Obama. Os apoiadores se aglomeravam em cima das televisões que faziam a cobertura ao vivo. Havia uma consternação geral. Mesmo que o Texas tenha permanecido solidamente vermelho, estava claro que muitos do resto do país estavam, de repente, num curso diferente. “Eu acho que ele é um socialista. Eu não penso que o povo que votou nele agora sabe o que é o seu verdadeiro plano”, disse Marilyn Martindale.
Essa era uma visão comum. Como o humor no Bar Madison foi ficando mais deprimido, a conversa giravam em torno do pior sob Obama. “Como ele pôde ter ganho a confiança do país? Eu tenho medo que nossa vida esteja para mudar drasticamente”, disse Sue Harris enquanto a Fox News alardeava os detalhes da mais recente perda dos republicanos.
Mas há fortes sinais de que o maior dos medos dos Republicanos – e os mais ambiciosos sonhos dos Democratas – não têm bases sólidas. Obama não apenas enfrenta um ambiente de potencial intoxicação econômica, ele mesmo se parece muitíssimo mais com um moderado do que com um radical. Contrariamente às preocupações dos Republicanos no Texas, muita gente pensa que Obama não é revolucionário. Tampouco que a eleição lhe deu uma licença para fazer uma revolução.
Muito da campanha de Obama estava baseado em sólidos fundamentos de centro. Seu apelo, do seu discurso na convenção de 2004 a esta campanha de 2008, sempre foi pela unidade. Ele disputou a eleição defendendo o direito constitucional de defesa dos proprietários de armas de fogo. Ele apoiou a pena de morte. Ele apostou nas promessas de cortes de impostos. Seus planos para a assistência em saúde era menos radical do que aquele da sua maior rival Democrata, Hillay Clinton ou John Edwards. Ele falou aos homens negros sobre a importância de assumir responsabilidade pela vida familiar. Seu discurso de campanha estava frequentemente inflado de valores religiosos.
Na verdade, Obama vestiu sua fé cristã mais abertamente, na disputa eleitoral, do que John McCain. “Eu acho que ele vai proceder agressivamente, mas não radicalmente”, disse Larry Haas, um comentarista político e ex-assessor de Clinton na Casa Branca.
Um olhar sobre as figuras determinantes da eleição também revela que a América não se tornou uma nação liberal da noite para o dia. McCain enfrentou um ambiente quase impossível para um Republicano concorrer. Ainda assim ele obteve 46% dos votos. A vitória de Obama na Carolina do Norte, Indiana, Ohio e Florida foi por poucos pontos percentuais.
Uma enquete recente mostrou que apenas 22% dos americanos se identifica com os liberais. Não deveria ser esquecido que McCain terminou as convenções à frente nas pesquisas. Foi somente depois da pior crise financeira desde a Grande Depressão que Obama conseguiu se tornar uma liderança sólida. Sua vitória não foi esmagadora como a de Roosevelt quando ele levou 48 estados em 1936, ou a de Reagan em 1984, que venceu em 49. Na realidade, Obama ainda perde dentre os votos dos brancos por 12 pontos percentuais e os brancos ainda são 74% dos votantes.
“Isso não é de fato uma onda. É um tipo de pequeno terremoto; ainda que, claro, quando você está no topo de um, o pequeno possa parecer bastante grande”, disse Darrell West, um diretor de um think tank de centro-esquerda da Brookings Institution.
Talvez não seja surpresa que dirigentes Democratas – ao contrário dos ativistas da esquerda do partido – não estejam clamando por revolução. “Este governo deve ser de centro”, disse a presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi na semana passada. “Eu não acho que este seja um mandato para New Deal”, ecoou Howard Dean, dirigente do Comitê Nacional Democrata. De fato, as ambições de Obama parecem limitadas e serão profundamente tolhidas pelas brutais condições econômicas que irá enfrentar. O há tanto tempo querido sonho de uma política de assistência em saúde será realizado em estágios, não de uma só vez.
“Eu não vejo a assistência em saúde acontecendo logo. É mais provável que se faça mudanças de incremento”, disse West. Muitos programas governamentais vão enfrentar arrocho orçamentário ou cortes de gastos. A opinião popular americana também permanece a mesma. Não houve um abraço massivo aos valores liberais. Muito do país permanece essencialmente de centro-direita. É só olhar a rejeição do casamento gay na Califórnia, semana passada.
Em nenhum outro lugar isso será mais claro do que na política externa, a despeito da euforia mundial da última semana. “Houve quase sempre continuidade na política externa Americana”, disse Haas. Na semana passada Obama começou a ter acesso aos mesmos informes da inteligência de Bush. Ele receberá um por dia pelo resto de sua presidência. São eles que provavelmente desenharão sua política externa, muito mais do que os ideais liberais.
Obama pode ser mais aberto para falar com nações como Irã, Cuba, Venezuela ou Coréia do Norte. Mas as forças armadas americanas permanecerão com seus postos militares avançados em todo o mundo. Na verdade, quando se chega a questões como Paquistão e Israel, Obama tem sido às vezes mais hawkish (2) do que McCain ou Bush. Ele tem falado sobre sua vontade de usar a força. Os países que receberam bem a vitória de Obama irão provavelmente entender rápido que as relações de poder no mundo permanecem as mesmas. A Realpolitik é um jogo que todos os presidentes norte-americanos jogam.
Mas, se a eleição de Obama não representa suficientemente um abraço americano à esquerda, ela mostra uma coisa: uma clara rejeição ao estilo Bush de republicanismo. A esse respeito uma nova era está nascendo. A eleição lançou o partido Republicano na selvageria política. Muita gente pensa que o movimento conservador popularizado por Reagan tem de mudar ou acabar. “Claramente houve uma rejeição massiva ao conservadorismo de Bush. Foi o fracasso daquela filosofia”, disse John Halpin, pesquisador convidado sênior no Centre for American Progress, umathink tank liberal dedicada a fortalecer a vida dos americanos através de idéias e ações.
Na semana passada o partido Republicano começou a superar essa rejeição. Num retiro de fim-de-semana na zona rural da Virgínia do ícone conservador Brent Bozell, fundador do grupo cão de guarda Media Research Centre, em torno de 20 grandes lideranças se encontraram para discutir o futuro do partido. Entre os convidados estavam o cruzado anti-impostos Grover Norquist e Al Regnery, publisher da American Spectator. Depois de conversas Bozell deu uma tele-conferência onde explicitou as conclusões do encontro. “A ala moderada do partido Republicano está morta”, disse ele. Isso ecoou os ataques conservadores aos moderados do partido, tais como os colunistas David Brooks e Peggy Noonan, que tinham criticado a direita durante a campanha. Alguns lhes pediram para deixar o partido.
Isso soa quase como música nos ouvidos democratas. Os democratas, longe de estarem lançando uma revolução de esquerda, ganharam muito apoio ao centro. Os Republicanos têm sido reduzidos aos seus recônditos. Como consequência, o partido Republicano está mais de direita e mais conservador do que o próprio país e pode se mover ainda mais para a direita. Isso também anuncia uma batalha amarga que durará, provavelmente, para além de 2012. “Eles vão fracionar severamente”, disse Haplin.
A guerra civil vai dar o tom da base conservadora do partido, provavelmente numa linha Sarah Palin, contra os reformadores que querem conversar com os moderados. É o mesmo processo por que os conservadores na Grã Bretanha passaram depois da vitória de Tony Blair em 1997. Ou os trabalhistas depois do triunfo de Margaret Thatcher em 1983. Os Republicanos estão fora, neste momento, das preocupações dos americanos. As pedras-de-toque das questões sobre aborto e o combate ao casamento gay despertam paixões mas não vencem mais eleições.
O ganho de Obama dos votos dos hispânicos também é crucial. Bush e seu guru político, Karl Rove, lutaram muito pelo rápido crescimento demográfico. Mas o colapso da reforma da imigração nas mãos dos conservadores republicanos acabaram com isso. Isso deixou o partido distintamente branco, ao tempo em que os votos das minorias se tornaram mais numerosos e mais poderosos.
Está difícil estimar um rápido caminho de volta para os Republicanos, seria necessária uma espetacular má-administração da presidência de Obama. Frum previu uma amarga avaliação das chances do seu partido nos próximos anos. Se a história serve de algum exemplo, a base dos conservadores vai agora tomar o partido, forçando uma plataforma de direita para seus candidatos de 2012. Só uma nova derrota presidencial convencerá o partido de que seu futuro está rumo ao centro. “É possível que possamos estar de volta na próxima eleição presidencial. Mas, para ser honesto, isso parece sempre mais distante que em um ano”, Frum, ex-assessor de Bush, disse.
Mas, apesar de a política dessas coisas ser complexa, houve poucas dúvidas que uma mudança genuína estava no ar na última semana. Isso pôde ser sentido até no coração da terra vermelha do Texas. Do lado de fora de um barraco na union hall (3) em Beaumont, Claudia Deshotel tinha clareza por que tinha votado em Obama. “Eu quero simplesmente algo diferente. Nós precisamos de mudança. Alguma coisa deve ser melhor do que o que temos agora”, ela disse.
Ela teve sorte. A direita foi rejeitada, mesmo que a esquerda não tenha sido plenamente abraçada. Obama escolherá um cuidadoso percurso entre o desejável e o possível para conduzir o país a um caminho diferente. Mas há uma área da política americana que foi plenamente transformada. A campanha de 2008 pôs um homem negro na Casa Branca. O poder simbólico disso não pode ser revertido. Quebrou-se uma barreira que parecia insuperável há uma geração.
Ao mesmo tempo, Hilary Clinton e então Palin superaram obstáculos para a as mulheres concorrerem aos mais altos postos. Isso também pôs a América num caminho sem volta. Um futuro de crescimento das minorias e das mulheres em ambos os partidos é inevitável. Nesse sentido, a campanha de 2008 criou um bravo mundo novo.
Publicado no The Guardian, onde Paul Harris é colunista, em 9 de novembro de 2008
Tradução: Katarina Peixoto
(1) Que cobra mais imposto para financiar programas distributivos. Político que taxa e gasta. N.de T.
(2) Denominação informal – significa falcão - para políticos pró-armas, ou pró-guerras, dos EUA. N.d.T.
(3) Região censo-designada do estado norte-americano da Virgínia, no Condado de Franklin. Da Wikipedia. N.deT.

Agência Carta Maior

US$ 553,5 bilhões atam o Brasil à ciranda mundial

A REORDENAÇÃO PÓS-CRISE

 

O Brasil atrelou seu destino à lógica dos mercados financeiros desregulados a partir dos anos 90. A prerrogativa da intervenção pública - sobretudo no setor financeiro - ficou subordinada a regras que protegem grupos de interesses locais e internacionais; os mesmos que ameaçam pôr em movimento uma montanha desordenada de capitais voláteis, cuja força é suficiente para reverter a retomada do desenvolvimento.

Redação - Carta Maior

Data: 10/11/2008

Moeda é poder. O consenso aparente em torno da regulação dos mercados nesse momento esconde a dimensão política da crise. Existe hegemonia embutida em uma nota de dólar; explorados e exploradores na definição da taxa de juro. Está em jogo a reordenação da hierarquia entre moedas abalada pelo colapso da ordem neoliberal. A prática não ecoa o consenso reformista dos discursos oficiais. Foi assim também em 1929.
Uma Guerra mundial levou para os campos de batalha a arbitragem de impasses que paralisavam as nações, corroíam regimes monetários e minavam a produção e circulação da riqueza. A nova correlação de forças sancionada pelo argumento bélico foi legitimada em Bretton Woods, em 1944, quando a velha liderança britânica cedeu lugar à supremacia dos EUA, dos seus bancos, da sua indústria e da sua moeda em todo o planeta.
A disputa em marcha no mundo encontra urgências e impasses equivalentes na vida interna das nações. O Brasil não é exceção: US$ 553,5 bilhões de dólares atam o país à ciranda mundial.
Decisões tomadas desde os anos 90, destinadas a atrair, incentivar e garantir a mobilidade do capital estrangeiro na economia nacional restringiram a autonomia da política econômica e podem enfraquecer o Brasil nas respostas para enfrentar a crise. A prerrogativa da intervenção pública - sobretudo no mercado financeiro - ficou subordinada a regras que fortalecem e protegem grupos de interesses locais e internacionais; os mesmos que agora ameaçam por em movimento uma montanha desordenada de capitais voláteis, cuja força é suficiente para reverter a retomada do desenvolvimento.
Hoje esses recursos equivalem a US$ 553,5 bilhões. Um poder de pressão quase três vezes (2,7 vezes) superior à margem de autonomia proporcionada pelas reservas cambiais acumuladas desde 2003 (US$ 200 bilhões). Assimetrias dessa ordem ajudam a entender um paradoxo da crise: a exemplo do Brasil, inúmeras nações da periferia do capitalismo clamam por reformas na arquitetura financeira mundial, mas hesitam em aplicá-las internamente.
Para entender como essa dependência se cristalizou e a dificuldade para reverter algo que aprisiona a economia numa espécie de “caos calmo”, Carta Maior ouviu vários economistas entre os quais a professora Daniela Magalhães Prates, da Unicamp. Especialista em economia internacional, Daniela publicou recentemente um artigo oportuno em parceria com Marcos Antonio Macedo Cintra, também da Unicamp: “Keynes e a hierarquia de moedas: possíveis lições para o Brasil” , texto incluído na coletânea “Economia do Desenvolvimento , teoria e políticas keynesianas”, organizada por João Sicsú e Carlos Vidoto.
I) Recursos voláteis equivalem a quase três vezes o total das reservas brasileiras
Dois pontos reafirmam a pertinência desse debate no momento. O primeiro é a gravidade e a dimensão do que está em jogo. Dada a inexistência de controles de capitais, o montante de dólares que entrou e poderá sair do país a qualquer momento impressiona pelo poder desestabilizador. “Estamos falando”, explica a economista Daniela Prates, "de US$ 553,5 bilhões que formam o Passivo Externo Líquido (PEL) do país”. Trata-se do saldo entre o estoque dos investimentos externos (financeiros e produtivos) existentes na economia; mais o valor da dívida externa; menos investimentos de brasileiros no exterior e reservas cambiais. Daí a denominação passivo “líquido” – uma medida de dependência mais exata que o conceito de dívida externa já que inclui toda ordem de remessas possíveis, desde juros, royalties, lucros a fugas potenciais do dinheiro de curto prazo.
Há uma outra forma de medir esse flanco, segundo a professora Daniela Prates . O saldo, neste caso, contabiliza o montante bruto de passivos de curto prazo, sem descontar as reservas. Hoje isso daria pouco mais de US$ 531 bilhões: 2,7 vezes o total das reservas. São recursos sujeitos a fugas e resgates abruptos, facilitados pelas decisões tomadas a partir dos anos 90 e agora postas em xeque. “Não existe estabilidade econômica numa situação como essa. Para ter segurança em regime de mobilidade de capitais só mesmo com reservas chinesas (US$ 1,5 trilhão)”, alfineta.
II) Armínio Fraga soldou o país ao cassino financeiro; sucessores mantiveram laços
O Brasil, a exemplo da maioria dos países da periferia do capitalismo, atrelou seu destino à lógica dos mercados financeiros desregulados a partir dos anos 90. O governo Collor já havia ensaiado alguns passos nessa direção, mas o ponto central da solda entre o mercado interno e a finança volátil foi consumado pelo então presidente do Banco Central no governo FHC, Armínio Fraga. Ex-funcionário do mega-especulador George Soros, Armínio trouxe para o BC um reconhecido traquejo no jogo pesado das finanças desreguladas. Foi essa experiência e o endosso do governo PSDB/PFL às teses do Estado mínimo que orientaram a decisão política de liberar o entra-e-sai de capitais de curto prazo no país em janeiro de 2000.
A Resolução 2.689 autorizou a aquisição de ações e títulos pelo capital estrangeiro, bem como liberou-o para captar, interligar e especular em mercados de derivativos. Hoje, o ex-presidente do BC beneficia-se dessa medida à frente do Gávea, um “fundo agressivo” aberto a investidores da elite do dinheiro fugaz. Gente selecionada pela carteira e apetite para correr risco altos em troca de retornos sempre acima da média mundial.
Os sucessores de Armínio Fraga, é forçoso dizer, ampliaram em vez de cortar os laços com a ciranda global. Restrições à aquisição e remessas de dólares foram eliminadas em março de 2005 pelo então ministro Antonio Palocci. Em julho de 2006, concedeu-se isenção fiscal na aquisição de títulos públicos por fundos estrangeiros.
“Boa parte da vulnerabilidade brasileira nesta crise decorre das implicações de medidas que facilitaram a mobilidade de capitais na economia”, confirma a economista da Unicamp.
III) Um jogo que dá direito à fatias crescentes da riqueza sem contribuir para gerá-la
Investidores estrangeiros e nacionais dispõem hoje de um variado cardápio de facilidades e “inovações” que garantem salvo-conduto na porta-giratória de um mercado amplamente integrado ao jogo da finança global. Um fundo como o Gems Investimentos de origem israelense, com sede em Londres, que capta recursos no Brasil e centraliza sua contabilidade no paraíso fiscal de Luxemburgo é um exemplo de como as coisas funcionam.
O Gems, como outros, explora uma novidade introduzida no país há dois anos muito apreciada antes crise. O “produto” de ponta da “indústria” de fundos permite captar recursos em reais; aplicar em ativos estrangeiros no exterior (ações, commodities, cotas de outros fundos, sub-primes etc); não deixa marcas de remessas na contabilidade do aplicador; não exige abertura de conta lá fora, nem incorre em ônus fiscal no estrangeiro. Tudo isso legalmente.
Gestores mais criativos seduzem clientes insaciáveis com promessas de metas “alfa". Trata-se de dobrar rendimentos numa sucessão fulminante de apostas globais feitas num curto espaço de tempo e à descoberto (em bom português: apostando o que não se têm). Esse são alguns indícios de que a regulação em pauta requer algo mais do que apelos sensatos à prudência e à temperança na gestão financeira. O que está em jogo é desmontar uma usina de lucros meteóricos que assegura a seus participantes o direito a fatias cada vez generosas da riqueza real, sem contribuir um centavo para que ela cresça em proporções equivalentes. É uma rota de colisão: de um lado, a voragem estrutural do capital fictício; de outro, o risco de colapso da sociedade que já não consegue mais saciá-lo sem se auto-destruir.
IV) Desregulação internaliza instabilidades e, ao mesmo tempo, engessa o Estado
Graças à livre circulação de capitais fundos hedge – assim como bancos e empresas - podem apostar livremente contra e à favor da moeda brasileira na bolsa local de mercadoria. Idealmente, o equilíbrio de contratos entre comprados e vendidos (respectivamente, apostas na alta e na baixa da moeda norte-americana, por exemplo) criaria um espaço de liquidez para proteger operações indexadas ao câmbio, caso do comércio exterior e empréstimos em moeda estrangeira. O colapso atual evidenciou que essa finalidade foi desvirtuada em todo o mundo e aqui também. Operações especulativas muito superiores às necessidades de hedge (proteção) seduziram exportadores e bancos que apostaram maciçamente na direção errada ao prever a queda do dólar no mercado brasileiro.
Estima-se que o mico referente a distintas modalidades de contratos de risco e opções “vendidas” em dólar possa alcançar entre US$ 40 bilhões a US$ 50 bilhões. Os casos da Sadia e da Aracruz ilustram o tamanho do prejuízo que poderá esfarelar balanços, a depender da evolução cambial: a primeira teria assumido posições de risco no valor de US$ 7,6 bilhões; a segunda, de US$ 8,5 bilhões.
V) O especulador entra sem trazer capitais, aluga fiança, aposta alto e altera o câmbio
Uma particularidade das operações com derivativos cambiais na bolsa brasileira é que os contratos são zerados em moeda nacional. Em tese, isso evitaria uma corrida ao mercado físico do dólar; vantagem anulada, todavia, pela mobilidade de capitais que potencializa a instabilidade inerente às apostas em derivativos. “O especulador estrangeiro não precisa internalizar recursos para fazer apostas na bolsa brasileira”, explica a economista Daniela Prates. “Ele pode fixar posições altamente alavancadas ( muito superiores aos recursos próprios) dispondo apenas de uma carta de fiança fornecida por banco local; ou mediante o aluguel de títulos depositados como margem de garantia na bolsa”, esclarece a professora da Unicamp.
Decorrem daí inúmeras distorções que convergem para gerar forte instabilidade na formação da taxa de câmbio, um dos preços decisivos do cálculo econômico. “O governo acumula reservas com base em fluxos físicos de capitais e mercadorias”, esclarece Daniela. “Porém, como dispensam ingresso efetivo de moeda, as operações com derivativos não deixam uma contrapartida equivalente no balanço de pagamento, nem nas reservas. Cria-se assim uma dissociação perigosa. Mudanças abruptas na direção e nos volumes das apostas, associadas a fugas de investidores, emitem um sinal forte que contamina a definição da taxa de câmbio no mercado físico. Como as reservas são inferiores ao deslocamento potencial em jogo, isso gera incertezas que se propagam por toda a economia”, ensina.
VI) Idéias de Keynes em Bretton Woods ainda enfrentam resistências, 64 anos depois
As conseqüências e constrangimentos que a mobilidade de capitais impõe às políticas de desenvolvimento foram exaustivamente estudadas por John Maynard Keynes nos anos 40. Em 1944, como representante inglês em Bretton Woods, ele propôs uma nova arquitetura financeira mundial .A criação de uma moeda global contábil (obancor) e um banco central dos bancos centrais (clearing union), constituíam mecanismos de coordenação indispensáveis, no seu entender, para harmonizar assimetrias entre economias ricas e pobres e garantir um ciclo estável de prosperidade no pós-Guerra. Impor uma disciplina espartana à mobilidade dos capitais era uma espécie de lei de bronze dessa arquitetura. As propostas de Keynes, como se sabe, foram rejeitadas pela delegação norte-americana que enxergou aí a tentativa inglesa de restringir a liderança mercantil e financeira conquistada pelos EUA durante a Guerra, que dava ao dólar o papel de moeda de reserva universal.
Dizer que os acontecimentos de hoje são uma conseqüência da derrota de Keynes em Bretton Woods é uma parte da verdade. Na realidade, Keynes conseguiu inserir nos estatutos de fundação do FMI - proposta vitoriosa norte-americana - o direito de as nações acionarem controles de capitais em condições críticas. Embora persista formalmente nos estatutos do Fundo, o tempero keynesiano foi sepultado na prática pelo avanço da desregulação nos anos 90. Algo semelhante se deu no Brasil, na medida em que a lei do capital estrangeiro de 1961 (nº 4.131) nunca foi revogada; mas acabou reduzida a um zumbi jurídico por conta das decisões tomadas nos últimos dez anos.
Sessenta e quatro anos depois, os temas e as propostas levantados por Keynes voltam à agenda obrigatória dos chefes de Estado, inclusive do Brasil. O mundo do crash de 2008 é mais complexo; o jogo de forças inclui potências que redimensionaram a geopolítica dopós-guerra; a China e os blocos econômicos ameaçam a hegemonia norte-americana. Ainda assim será difícil vencer a resistência dos EUA em aceitar uma nova hierarquia monetária que reduza seu poder expresso em dólares.
VII) Um dos custos para atrair e manter capitais voláteis é pagar juros paralisantes
A espada de incertezas erguida sobre as políticas econômicas tende a promover uma acomodação baseada em taxas de juros impiedosamente hostis ao desenvolvimento. Em vez de controlar e selecionar investimentos que interessam, recorre-se a uma espécie de taxa- tampão, alta o suficiente para tornar sedentário um capital que por natureza é errático e especulativo. Num momento em que os BCs de todo o mundo reduzem o custo do dinheiro para refrear a espiral recessiva, o Brasil mantém a Selic em 13,75%. E ainda ameaça elevá-la novamente.
VIII) Crise desmente a tese de que livres mercados asseguram liquidez just-in-time
Juros altos radicalizam assimetrias macroeconômicas em torno de objetivos naturalmente díspares mas desejáveis, ironicamente sintetizados na tríade impossível perseguida por todas as escolas econômicas. A saber: simultaneamente sustentar o crescimento, estabilizar o câmbio e controlar a inflação. “Mais que uma defasagem específica entre reservas e passivo externo, a crise põe em xeque a tese de que a liquidez mundial tornaria desnecessário adotar o controle de capitais para estabilizar o crescimento”, explica professora Daniela Prates. Segundo a ortodoxia dos anos 90, a liquidez inerente à desregulação faria do mercado mundial um provedor just-in-time, harmonizando necessidades distintas entre contas correntes, déficits e superávits comerciais.
Sob certas circunstâncias, a panacéia entregou o que prometeu. Mas ao reverter o ciclo de liquidez para uma fuga planetária rumo ao dólar, verificou-se o quanto são frágeis as certezas ideológicas que menosprezam circunstâncias e contradições históricas. No Brasil, a exemplo do que ocorre em muitos países, o caos calmo expresso no passivo externo líquido pode transformar-se em tempestade tropical. “Reverter esse quadro em plena crise, naturalmente, é muito complicado”, admite Daniela Prates. Ainda que alguns avanços ocorram nas cúpulas internacionais, nenhum país escapará, porém, da necessidade de adaptar a agenda da regulação ao seu idioma e circunstância. Desde já o Brasil precisa decidir em que medida vai manter seu destino amarrado a um trem sem trilhos que justamente por isso mostrou-se capaz de descarrilhar o mundo.

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